“I, too, am the source of life” (Eu, também, sou a fonte da vida)
Fabiano Seixas Fernandes

Por Kah Dantas*

Era madrugada quando eu terminei de escrever o prólogo do meu próximo livro, com dois dedos de lágrimas e um sono que já não me maltratava. Todas as coisas ao meu redor, antes sem forma e vazias, pareceram então muito claras e cheias de vida, até que eu contemplei a minha criação e vi que era boa.

Separei o texto numa mensagem carinhosa, secreta e enviei para a divindade que o tinha inspirado, com a alma enlevada de felicidade e o espírito confiante do futuro bem-sucedido daquele gênesis. Satisfeita, fechei os olhos e descansei.

Só para abri-los de ansiedade um par de horas depois e quedar incrédula, que meia dúzia de palavras me tinham sido enviadas em retribuição, minutos antes, desconfiadas, medrosas e heréticas, condenando o meu parto a um fim dos tempos prematuro e referindo-se a ele como uma mera espreita, vã e irresponsável.
Gostava que eu a desnudasse, mas não para outros olhos.

Elaborei as desculpas mais desajeitadas, prometi apagá-la do texto, disse que não escreveria mais coisa alguma sobre ela ou faria qualquer referência à sua pessoa. “Entretanto, fico com o cacto”, decidi, pois não abriria mão de desbravar as metáforas desérticas do meu coração, ora mais, e ela seria, por acaso, a única pessoa a ter o diabo de um cacto no mundo?

Chegou ao ponto de tagarelar espantos pragmáticos e surreais, a mim, que escrevo, “por esse tipo de coisa que há autorizações relacionadas à ética das investigações”, pois muito bem, vá lá, faça uma denúncia junto ao Comitê de Ética em Pesquisas Com Seres Humanos ou… com Cactos, que seja.

Pra lá do fim das contas mais indigestas, recusou-se a me enviar de volta as minhas próprias mensagens, asna e dramaticamente deletadas por mim, afirmando que estava receosa da exposição, do que eu faria com elas, com as minhas impressões!, com os sonhos que tinham nascido dentro de mim!, ofendida mesmo com o sem-nome seu no meu texto, “é como se você estivesse espionando minha intimidade”.

Muito bem, pensei. Respeito militarmente sua decisão e queixa.

Mas o que de fato me feriu foi que ela tenha se apropriado do que eu escrevi, sentenciando minha escrita ao cárcere para proteger a sua própria que, ela há de concordar, não abrigava nada de matéria-prima para o meu ofício e que eu sequer pretendia cinzelar.

Então vai carcereira, falsa musa, que eu vou criadora.

E eu que achava que não poderia te amar por outras razões descobri, quando houve luz, que não poderia te amar era pelo desgosto causado pela tua ingênua e presunçosa censura, empolada feito outros medos teus.

Passados o mal-estar e o desespero do meu não entendimento, vejam só, separei a luz das trevas. E compreendi, nesta manhã de terça-feira, depois de reprovada em mau juízo, que não (sobre)vivo sem escrever.

Que sou incapaz de sentir sem escrever sobre as grandezas e pequenices dos meus sentimentos.

Que não existo se não escrevo.

***

Kah Dantas
é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
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Fabiano Seixas Fernandes
é ilustrador, tradutor e poeta. Fundador da tradizer: serviços de tradução. Entre 2012 e 2015, publicou o blogue pequeninos (poesia autoral); publica o podcast quase uma Bethania (recitação de poesia). Traduziu poemas de John Milton para o português (L’Allegro, Il Penseroso, excertos de Comus e Paradise Lost).
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