Por Kah Dantas*

Ilustração de Bruno Marafigo

Foi tudo, tudo muito depressa, escute. Eles viveram a vida toda aqui, entende? Meus vizinhos a vida toda. Só que eram duas filhas já adultas com a primeira e legítima mulher e três crianças com a segunda, que ele conheceu vendendo marmita no pé de uma construção e colocou numa casa em bairro distante, enganada. A menina mais velha dela, de catorze anos, a bichinha, nem saía da cama, porque nasceu com uma dessas doenças incuráveis, de só mexer os olhos e fazer murmurar a boca com baba. Os outros dois são mais crianças ainda, uma menina de oito e um menino de seis. E eles têm todos a pele mais escura, que a mãe tinha sido uma mulher negra, coisa que ele calava quando estava sóbrio e que negava cuspindo quando estava bêbado. Depois de morta por um câncer no útero, dizem, foi uma amiga dela desaforada que veio aqui pessoalmente deixar as três crias adulterinas na porta dele e da mulher, que as acolheu horrorizada e obrigada pela primogênita. Era impossível negar a semelhança com aquele cabra e, cá entre nós, só vivia embriagado, mas jurava que era homem honrado, que a mãe tinha sido uma senhora santa e que o pai o tinha criado para a família. Dizia que não admitia aquela situação, imagine! A comadre nem o olhava mais, quanto mais trocar palavra. As crianças, órfãs de pai e mãe, viviam num quarto atrás da casa, que a filha mais velha, coitada, professora às vésperas de se casar, tinha mandado levantar para abrigar os menores, depois de ter comprado inimizade sem volta com a mãe magoada e de ter arranjado uma razão definitiva para odiar aquele homem que ela tinha passado a vida chamando de pai. Foi na noite de noivado, né? Os convidados faziam festa e música na área verde em frente do casarão que ele mesmo construiu, bem ali, veja, comendo, bebendo e dando risada; dava para ouvir muito bem daqui, meu marido disse, enquanto as crianças, proibidas pela comadre de sair, ficaram adormecidas no quarto ao fundo. Pior que ninguém viu, nem ouviu a arrumação. Se alguém sentiu falta dele? Ave, nada. Ninguém gostava dele. Foi a mais velha, a noivinha, que se sentiu mal, tal hora, e decidiu ir buscar as crianças para comer, mesmo com a mãe pedindo a ela que não. Todo mundo acompanhou. Dizem que foi cena de filme de terror, pode escrever. Enquanto todo mundo celebrava, ele estava lá assentando tijolos, era o trabalho dele antes de se aposentar, e morto de bêbado, como passou a vida, tampando a entrada do quarto com as crianças dentro, tudo deitadinha na cama. Parece que ele tinha banhado as crianças com gasolina e ameaçado, ninguém sabe, mas quando a mais velha chegou, já estava a menina doente enrolada num lençol que pegava fogo, enquanto as outras duas gritavam no canto do quarto, “pai, pai”, elas gritavam, tadinhas, mas já tinham nascido com essa palavra muda na boca. A filha professora ia derrubando os tijolos desesperada, sangrando a garganta de tanto gritar socorro. Pegou as crianças sadias e pôs para fora, depois sacudiu e bateu os lençóis da aleijada, mas era tarde demais, que a gasolina tinha ido na pele. A festa só parou quando a fumaça chegou na frente de casa, mandaram parar a música e ouviram os gritos, chega dá um frio na espinha quando eu me lembro, a filha coberta de cimento puxando as crianças pequenas pela mão, chamando o noivo, a mãe, uma ambulância. O fogo a própria filha apagou, não sei como, mas a menina doente já tinha sido levada pelos anjos. Antes não tivesse nascido, eu acho. Não, moço, ninguém encostou dedo nele. Foi a polícia que levou aquele infeliz. Monstruosidade? Não foi monstro, foi homem. Isso é tudo coisa de homem, meu filho. Pode escrever aí.

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Kah Dantas é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
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Blog: Orgasmo Santo

Bruno Marafigo é um ilustrador e quadrinista curitibano.
Contato: brunomarafigo@hotmail.com
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Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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