Por Juliana Guedes*

Sabe quando você olha para um ideograma japonês, não sabe o que ele significa e fica imaginando que palavra seria aquela? Então, a poesia visual da escritora portuguesa Ana Hatherly carrega esta sensação. Chegamos a perceber alguma frase nos arabescos da poetisa, esprememos os olhos, mas não deciframos nada, nenhuma palavra sequer, a não ser o desenho formado pelos rabiscos. As formas são ondulantes, parecem pequenos parafusos alongados e é exatamente isso que nos chama a atenção, o movimento. A página poética está manchada por traços ilegíveis, algumas inclusive são todas escuras, sem letras e, ao mesmo tempo, tentamos na visualidade do movimento e das manchas uma leitura possível.

Ana Hatherly esteve vinculada ao experimentalismo internacional da década de 1960, participou do grupo da revista portuguesa “Poesia Experimental” e explorou a plasticidade da escrita de forma única, aproximando letra e desenho, numa perspectiva “orientalizante” da visão, abandonando a discursividade poética. Em outras palavras, sabemos que um dos fundamentos da escrita literária é o discurso e a autora, assim como os irmãos Campos, aqui do Brasil, fundadores do movimento concretista, não viam a necessidade de palavras compridas ou frases longas para se criar poemas. Ressaltamos que na década de 1950, antes do grupo experimentalista, Hatherly já tinha publicado três livros de poesia e uma novela. Não obstante, a autora ainda escreveu em estilos diversificados, tais como: o poema-ensaio e a micro-narrativa.

Ana Hatherly

Hatherly produziu cinema, foi pintora e estudou música. Na antologia denominada “A idade da escrita e outros poemas”, de 2005, percebemos poemas extensos, em prosa, expressando perdas, o sentir do dia, fenômenos, mistérios, etc. Sem falar nas alografias que perturbam qualquer segurança vinda da linguagem. A escrita é deslizante e espacializada na página. A voz poética, por exemplo, coloca a concha do mar no ouvido e tenta traduzir o som: “[…] aquele ruído dentro do labirinto de um búzio, é o susto incompreensível” (p. 25). A representação visual da escrita, tão notória, nas obras da escritora lusitana, fazia parte do espírito artístico da autora, que buscava todas as formas de comunicação, para além do registro ordinário da escrita ou da fala: “Paraíso acidental/ metódico exercício/ a máscara da palavra/ colou-se-nos ao rosto: agora é/ o nosso mais vital artifício” (p. 63).

As influências da autora percebidas durante a leitura foram: às artes poéticas barrocas, às artes poéticas modernas, o concretismo, Camões, Fernando Pessoa e Rilke. Em entrevista, Hatherly afirma ser impossível redescobrir novas formas de escrita, sem um olhar para o passado. Ninguém cria a partir do nada e por ela vir de uma cultura portuguesa bem tradicional, o peso da tradição acabou por resultar na revolução da linguagem experimental. Ela foi uma estudiosa apaixonada do barroco.

Os caligramas, os paradoxos, as entidades poéticas, o maneirismo, a geometria, as figuras mitológicas, as pequenas fábulas poéticas, a metalinguagem poética criam a “performance” lírica de Ana Hatherly: “escrevo e descrevo/ e descrevendo/ o tempo insere-se nas linhas/ e nas entrelinhas em que escrevo/ escrevendo imagens/ que a si mesmas se descrevem/ descrevendo o tempo” (p. 59).

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* Juliana Guedes ensina literatura desde 2012. Atualmente, faz curso de doutorado em literatura comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Escreve poemas, alguns publicados em coletâneas e revistas. Gosta de museus, pinturas e músicas clássicas. Ela assina, mensalmente, a coluna Tudo é Poesia, no blog Leituras da Bel, falando sobre poesia portuguesa moderna e contemporânea, feita por mulheres.

 

 

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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