Por Antônio LaCarne*

Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

 

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No dia da prisão de Afonso e da morte do meu grande amigo, eu me perguntei – trancado em algum cômodo da casa – se o destino e suas pedras quebram constantemente o vidro de que somos feitos.

Mas eu estava diante da cozinha, de pés descalços, e o meu gato miava com olhos gigantescos, sempre atentos – com suas vidraças possivelmente intactas. Nos dois meses seguintes eu ainda pensava na morte do amigo e em Afonso atrás das grades. Eu pensava em algum ponto de interrogação submerso, mas só conseguia enxergar a pia, a torneira, os pratos a serem guardados. Eu queria algum acontecimento sem urgência, algo de que eu pudesse tomar conta, sem insônia. Eu, possivelmente dono de uma fazenda e seus cabritos, porém algo existia dentro do meu rosto sem solução; por isso falei ao telefone, e me percebi confuso – a formular frases desconexas na cabeça, entre uma pausa e outra, entre um nada e outro nada.

Algum detalhe sobre o dinheiro que eu esperava ao fim do mês – e com ele nas mãos, ausência e a presença de outra necessidade infinita. Uma distração na ida ao shopping; na volta, subir as escadas, os olhos nos degraus – enfim outra sede, outra pergunta, vontade partida sem luz no fim do túnel. Ou a pizza a ser entregue em vinte minutos, enquanto eu observo os talheres, sem fome, o prato vazio ao lado – os olhos fixos na brancura dentro da brancura do prato. Mas o gato ainda me perseguia e miava com seus olhos gigantescos.
Pois este era o meio: dia após dia, o sentimento do amigo morto que não me traria pistas. As vidraças que são construídas e partidas, como não querer amar após quase morrer de amor. Afonso ainda atrás das grades.

Eu queria que a morte não fosse repentina ou anunciada. Queria que ao fechar as portas algo fosse observado por lentes de microscópio dentro de si, amansado dentro de si, beijado dentro de si. Que a vida não fosse uma manifestação de organismos, frases, orgasmos, noites e fotografias perfeitas.

Queria que o morto e Afonso só irradiassem “cego esplendor” de obstinados e maníacos, morte e vida em um só corpo, como nos filmes de algum diretor que desconheço.

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Antônio LaCarne
É cearense, formado em Letras Inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Autor de Elefante-Rei: Poemas B (CBJE, 2009), Salão Chinês (Patuá, 2014); Todos os poemas são loucos (Gueto Editorial, 2017) e Exercícios de fixação (AR Publisher, 2018). Participou das antologias “A polêmica vida do amor” (Oito e meio, 2011) “A nossos pés” (7Letras, 2017), “Golpe: antologia-manifesto” (Nosotros Editorial, 2017) e “Rotatórias” (Galeria Sem Título Arte, 2018).

 

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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