carta 13
— Por Kami Girão

[playing with lights] Foto de Kami Girão

Foram meses complicados. Ainda sinto o corpo pesado daquela época, difícil de carregar por aí. Meu joelho desgastado me lembra dos dias em que o estômago estava sempre vazio de alguma coisa. Em contrapartida, eu esvaziava a carteira para preenchê-lo com comida de aplicativo, mas o buraco só crescia e crescia. Virava sem fundo.

Lembro, também, o estado do meu cabelo, que era resquício de uma cor rosa que eu não soube como cuidar. Estava sem brilho, ressecado, desbotando nas pontas e com uma cor irregular, porque nunca fui muito jeitosa para aplicar tinta nos fios. As olheiras bem visíveis no meu rosto surgiram naquele tempo, e até hoje acredito que foi resultado da rotina quase diária de choro que eu tinha. Uma vez, conversando com um amigo, comparei fotos do início do ano com as do fim, e fiquei assustada com o que estava vendo.

Mas a lembrança mais nítida é de quando tive ciência de que tudo estava desabando. Consigo me ver na praça de alimentação do shopping, cabulando aula para construir uma fanfic de um jogo que eu havia recém-descoberto. Foram muitas folhas e folhas de fichário, redigidas a caneta e de maneira quase espiritual. E depois desse último e amigável sopro, a chama enfim findou. Eu estava em uma caverna escura e à minha própria sorte de repente.

A partir de então, me senti terreno estéril. Dei murro em ponta de faca para recuperar a habilidade de escrever, de me sentir eu mesma, mas só tive frustração como recompensa pelo esforço investido. De modo simbólico, eu me sentia uma carne sem vida, que desaparecia no poço de queda livre que surgira tão inesperadamente em mim. E isso me motivava a tomar decisões erradas, a confiar em pessoas erradas, a me destruir e destruir e destruir de diferentes formas.

E foi assim, me sentindo tão estranha dentro de mim, em um trabalho que me desrespeitava e sendo desprezada pela instituição que publicou o meu livro mais significativo, que tomei a corajosa decisão de tirar uma foto dentro do mar. Foi na virada de ano, de 2017 para 2018, transição essa que não aconteceu de forma tranquila. Havia aquela tristeza, aquele incômodo, mas que pareceu me dar uma trégua rapidamente quando vi a lua cheia nas últimas horas de 2017. Existia mar, existia lua, existia música que tocava e que me fazia dançar.

Foi só recentemente que entendi o que aconteceu naqueles dias, quando comecei a estudar o tarô. A carta 13, “La Mort”, apareceu para mim em um jogo naquele tempo. É um dos arcanos mais temidos do baralho, considerado um dos piores e identificado pelo número do azar. Não estamos preparados para a visita dessa senhora quando ela resolve nos bater à porta, seja literal ou simbolicamente. Mas se aceitamos bem a companhia dessa figura, não precisamos ter medo. Podemos, na verdade, aprender coisas importantes sobre inícios e fins de ciclos. Findar coisas é parte do processo de viver.

Ao olhar para a foto em que estou dentro da água, tão esquisita e deslocada, consigo entender melhor o sentido da carta 13. E posso, sim, ver a mensagem positiva que ela pode trazer. Antes de ser registrada dentro do mar, eu costumava dizer que, se eu não conseguisse mais escrever, me sentiria morta. Nessa época, era assim que eu de fato me sentia, terreno infértil para tudo, desprovida da criatividade para viver que sempre me acompanhou. Mas é quando a carne morta vira adubo que um novo tipo de vida pode surgir. E os ciclos recomeçam com a beleza que é própria deles.

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Kami Girão

Nasceu em Fortaleza, Ceará. É designer gráfico, revisora, tripulante do CosmoNerd e pau para toda obra. Eterna estudante, mahou shoujo, escritora e, às vezes, tira tarô. Gosta de perambular por aí com uma câmera analógica de brinquedo que custou menos de trinta reais num site chinês. Pode chamá-la para papear sobre Boku no Hero, e vocês serão melhores amigos para sempre.

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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