Por meio de um post  Fred Navarro no Twitter de cheguei ao texto “Os mestres da tesoura”, na revista Bravo! Os editores, como vocês sabem – é disso que trata o artigo – são sempre criticados por sua tarefa de cortar e ajeitar textos. O editor é um eterno incompreendido – muitas vezes xingado: censor!, o mais leve dos nomes.

Pois nesse artigo de Mariana Delfini, os editores são louvados: os heróis que muitas vezes “salvam os textos dos autores”. Gostei; já passei pelo papel de editor [de jornal] e, muitas vezes, me vi em situação difícil para mostrar a jovens jornalistas, dados a literatices, que jornal não é de borracha – e que os leitores têm direito a um texto claro, objetivo e, principalmente, compreensível.

Ler e divulgar o artigo da Bravo!, portanto, uma pequena vingança.

Mas esta postagem é para cumprir minha resposta a Fred Navarro, pois em resposta ao seu post no Twitter disse-lhe que buscaria um artigo de Graciliano Ramos em que este narra como, em um concurso literário, votou contra o livro de contos Sagarana, de ninguém menos do que Guimarães Rosa [que o assinava com o pseudônomi Viator], por julgá-lo muito prolixo – um catatau de 500 páginas.

Tempos depois, Rosa publicaria o livro, e Graciliano comenta: “O volume de 500 páginas emagecreu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração”.

Vejam que interessante os artigos em que Graciliano narra o fato e fala do seu encontro com Guimarães Rosa.

Conversa de bastidores
Graciliano Ramos
[16/maio/1944]

Com o papel caro, o livro pela hora da morte, as tipografias abarrotadas, o livreiro se esconde, recusa de longe as ofertas de escritas que inundam o mercado. Pois sei de editor rigoroso que andou em busca de um literato inédito, desconhecido, tão desconhecido que até lhe ignorávamos o nome.

Talvez seja conveniente narrarmos este absurdo, pois o autor em questão, depois de longo silêncio e longas viagens, surgiu de repente, causando barulho em jornais e revistas. Acho-me em boa situação para considerá-lo sem exageros e contar um sururu artístico sucedido há quase dez anos. Alguns leitores apreciam tais leviandades, em falta delas criam anedotas, supondo interessante a vida dos sujeitos que usam pena e tinta. Engano: é chatice.

Ora, em maçada horrível, das piores, que sempre nos facultam como prova de consideração, respeito, etc., senti-me envolvido em 1938. Um concurso, precisamente o concurso Humberto de Campos, da livraria José Olímpio. Pertenci ao júri. Que remédio? Ante o sorriso amável e assassino do negociante de papel impresso, aceitei o convite, amarelo, disposto a não ler nada, jogar o trabalho sobre o resto da comissão. É o que pensamos ao tomar semelhantes incumbências.

– Que influi o meu parecer? Confio no juízo dos outros, voto com a maioria – e está acabado.

No julgamento percebe-se que todos procederam do mesmo jeito e prorroga-se o negócio. Com certeza há nova dilatação, até que alguém resolva amolar-se.

Pois nesse júri de 1938 aconteceu que cinco indivíduos, murchos com o golpe de 10 de novembro, indispostos ao elogio, enfastiados, decidiram ler mais de cinqüenta volumes. Podem imaginar como a tarefa se realiza. A gente folheia o troço, bocejando, fazendo caretas, admite enfim que a leitura é desnecessária; solta-o, pega um papel, rabisca um título, um pseudônimo, um zero, às vezes qualquer reflexão enérgica. E passa adiante. Alguma coisa razoável é posta de lado e mais tarde se examina.

Aborrecendo-me assim, abri um cartapácio de quinhentas páginas grandes: uma dúzia de contos enormes, assinados por certo Viator, que ninguém presumia quem fosse. Em tais casos rogamos a Deus que o original não preste e nos poupe o dever de ir ao fim. Não se deu isso: aquele era trabalho sério em demasia. Certamente de um médico mineiro, lembrava a origem: montanhoso, subia muito, descia – e os pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontavam. Admirei um excelente feitiço, a patifaria de Lalino Salatiel e, superior a tudo, uma figura notável, dessas que se conservam na memória do leitor: seu Joãozinho Bembém. Por outro lado enjoei um doutor impossível, feito cavador de enxada, o namoro de um engenheiro com uma professorinha e passagens que me sugeriam propaganda de soro antiofídico.

Houve discussão e briga. No dia do julgamento, eliminadas composições menos sólidas, ficamos horas no gabinete de Prudente de Morais, hesitando entre esse voluma desigual e outro, Maria Perigosa, que não se elevava nem caía muito. Optei pelo segundo – e, em consequência, Marques Rabêlo quis matar-me: gritou, espumou, fez um número excessivo de piruetas ferozes. Defendi-me com três armas: o doutor, a professora, as injeções antiofídicas.

– Ora, essa! Discutimos literatura de ficção. Deixemos em paz o Instituto de Butantã.

Dias da Costa apoiou-me. Prudente de Morais sustentou Marques. E Peregrino Júnior, transformado em fiel de balança, exigiu quarenta e oito horas para manifestar-se Escolheu Maria Perigosa – e assim Luís Jardim obteve o prêmio Humberto de Campos em 1938.

Viator desapareceu sem deixar vestígio. Desgostei-me: eu desejava sinceramente vê-lo crescer, talvez convencer-se de que me havia enganado preterindo-o. Afinal os julgamentos são precários – e naquele tínhamos vacilado. Eu, pelo menos, vacilara. Às vezes assaltava-me vago remorso e perguntava a mim mesmo onde se teria escondido Viator. Em conversa com José Olímpio, referi-me a ele. Se se cortasse alguns contos, publicar-se-ia um bom livro. E o meu amigo, com entusiasmo fácil, logo se pôs em busca do escritor misterioso, chegou a sugerir-me um artigo, espécie de anúncio. Todas as pesquisas foram inúteis.

Em fim de 1944, Idelfonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa.

– O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
– Como era o seu pseudônimo?
– Viator.
– Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.

Idelfonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada.

– Sabe que votei contra o seu livro?
– Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.

Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica. Falei na intenção de José Olímpio, mas julgo que o meu novo companheiro já tinha compromisso.

Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal – Rio – 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O burrinho pedrês, A volta do marido pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance. Achariam aí campo mais vasto as suas admiráveis qualidades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar minúcias na aparência insignificantes, uma honestidade quase mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado nesse rigor, indicara a Prudente de Morais numerosos versos para efeito onomatopaico intercalados na prosa. Vou reencontrá-los. Lá estão, à página 25, fixando a marcha dos bois nos caminhos sertanejos, dois períodos (o primeiros feito de adjetivos aplicáveis ao gado) composto de pentassílabos: “Galhudos, gaiolos, estrelos, espécios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, sambraias, chamurros, churriados, corombos, coruetos bocaleos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros… E os toscos da testa do mocho macheado, e as rugas antigas do boi corualão…” Notem que temos aí dez aliterações. O rumor dos cascos no chão duro se prolonga – e à página 26 ainda é martelado em dezesseis versos de cinco sílabas: “As ancas balançam, e as vagas de dorsos das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estratos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…”

Esse doloroso interesse de surpreender a realidade nos mais leves pormenores induz o autor a certa dissipação naturalista – movimentar, por exemplo, uma boiada com vinte adjetivos mais ou menos desconhecidos do leitor, alargar-se talvez um pouco nas descrições. Se isto é defeito, confesso que o defeito me agrada.

A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.

Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irracionais direitos, exibidos com peladuras, esparavões e os necessários movimentos de orelhas e de rabos. Talvez o hábito de examinar essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com lentidão bovina.

Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se.

……

O Mestre Graça acerta na mosca – exatamente em 1956 Guimarães Rosa publica seu Grande Sertão: Veredas – um marco da literatura brasileira, que veio a lume três anos depois da morte de Graciliano, em 1953.

Veja outro texto de Graciliano Ramos, provavelmente escrito em 1938, quando ele comenta o livro de Viator, sem saber que este era o pseudônimo de Guimarães Rosa.

Um livro inédito
Graciliano Ramos

No concurso Humberto de Campos, instituído pela livraria José Olímpio, dois escritores chegaram juntos até o último escrutínio: o sr. Luís Jardim, já obtentor de vários prêmios, e Viator, pseudônimo dum desconhecido que se apresentou com um livro de quase quinhentas páginas datilografadas. Houve discussão, o júri excitou-se, afinal Viator perdeu por um voto. Perdeu, mas teve a preferência de Prudente de Morais, o que sempre vale alguma coisa. E quase chove pancada, argumento de peso nesta capital do futebol e do carnaval, onde os literatos se esquentam desesperadamente e a crítica às vezes deixa o jornal, entra nos becos, ataca famílias respeitáveis e acaba em murros.

Votei contra esse livro de Viator. Votei porque dois dos seus contos me pareceram bastante ordinários: a história dum médico morto na roça, reduzido à condição de trabalhador de eito, e o namoro mais ou menos idiota dum engenheiro com uma professora de grupo escolar. Esses dois contos e algumas páginas campanudas, entre elas uma que cheira a propaganda de soro antiofídico, me deram arrepio e me afastaram do vasto calhamaço de quinhentas páginas.

Jardim embolsou o prêmio, figurou nas vitrinas, recebeu da crítica umas amabilidades. E Viator não se manifestou, até hoje permanece em rigoroso incógnito: ignoramos se é moço ou velho, em que se ocupa, a que raça pertence. Apenas imaginamos que é médico e reside no interior, em Minas ou perto de Minas.

Ora esse silêncio não é razoável. Em virtude da decisão do júri, muita gente supõe que o concorrente vencido seja um escritor de pequena valia. Injustiça: apesar dos contos ruins e de várias passagens de mau gosto, esse desconhecido é alguém de muita força e não tem o direito de esconder-se. Prudente de Morais acha que ele fez alguns dos melhores contos que existem em língua portuguesa. Nestes tempos de elogio barato opiniões semelhantes fervilham nos jornais e não têm a mínima importância, mas Prudente desdenha os salamaleques e julga devagar. Hesitou entre os dois livros, afinal optou pelo que, tendo graves defeitos, encerra trabalhos como Conversa de bois, uma verdadeira maravilha.

Três membros da comissão escolheram um livro que não sobe demais nem desce muito. Um deles, na véspera do julgamento, aconselhou José Olímpio a editar as duas obras, qualquer que fosse a premiada. Realmente a escolha era bem difícil.
Mas Viator não apareceu, o que devemos lastimar. Orgulho ou modéstia? Parece que esse homem não se contenta com segundo lugar. Aqui, porém, não se trata de subalternidade: dos seus contos uns são melhores, outros são piores que os do escritor pernambucano. Viator é terrivelmente desigual: ou o namoro idiota da professorinha ou a morte do compadre Joãozinho Bembem, página admirável.

Vivem por aí a falar demais em literatura do Nordeste, literatura do Centro, literatura do Sul, num jogo de empurra cheio de picuinhas tolas. As histórias a que me refiro são do Brasil inteiro: por isso não podemos saber onde vive o autor, um sujeito que sabe o que diz e observou tudo muito direito.

É preciso que o livro de Viator seja publicado. O meu desejo é que figurem no volume todos os contos, os bons e os maus. A publicação dos segundos justificava a opinião de três membros do júri que funcionou no concurso Humberto de Campos.