O caderno Vida & Arte do O POVO deste domingo [9/8/2009] publica interessante  matéria sobre o Vale Cultura. E não digo isso por nela ter sido citado :), mas pelos próprios méritos, pelos esclarecimentos que presta sobre o assunto.

A reportagem começa com Vale Cultura? Vale?, em que mostra a trajetória da Lei Rouanet em seus 18 anos de existência; em Nova polêmica, as visões contra e a favor do Vale Cultura; Cultura na cesta básica é uma entrevista com o ministro Juca Ferreira; Com R$ 50 no bolso uma explicação muito boa de como funcionará a lei e um interessante exercício de jornalismo: o repórter Marcos Sampaio [autor dos textos e da entrevista] entrega R$ 50,00 a dois trabalhadores e os acompanha em suas compras de bens culturais. A reportagem é boa no conjunto, mas essa parte, em que são consultados os mais diretamente interessados, considero a mais interessante.

Já havia escrito neste blog sobre o assunto na postagem Vale Cultura, Dimenstein e a elite cultivada, em que comentei um artigo do jornalista Gilberto Dimenstein, que pode ser visto a seguir.

O espetáculo eleitoral
Gilberto Dimenstein – Folha de S. Paulo, 26/7/2009

EM MEIO a uma concorrida cerimônia, o presidente Lula acompanhado de Dilma Roussef lançou, na quinta-feira passada, provavelmente a última bolsa de sua gestão, dessa vez para estimular os trabalhadores a comprar livros e frequentar museus, teatros, cinemas, exposições e concertos. A satisfação foi quase generalizada. A estimativa de R$ 7 bilhões por ano (sete vezes mais do que toda a arrecadação da Lei Rouanet) significa mais plateia aos artistas. Para os empresários, a chance de agradar a seus empregados e, ainda por cima, abater do imposto; para os trabalhadores, mais um benefício.
E, enfim, para o governo, apoio de um segmento que pode influenciar nas eleições que se aproximam e serve para reduzir, em determinados setores, os danos causados pelas mudanças anunciadas da reforma da Lei Rouanet, criticada especialmente no eixo Rio-São Paulo. Receio que estejamos diante de mais um espetáculo de desperdício, contracenado pelo presidente e por um grupo de artistas, de olho, respectivamente, no que entra nas urnas e nas bilheterias.

Uma das razões da reforma da lei de incentivo fiscal foi a percepção do desperdício, seja porque os shows e as obras patrocinadas eram um lixo, seja porque alguns deles tinham viabilidade comercial. Na semana passada, Caetano Veloso voltou a reclamar por ser vítima de ataques levianos e injustos por ter pedido R$ 2 milhões em dinheiro público para seus shows, cuja plateia está sempre lotada e os ingressos são caros.
Vamos reconhecer que o extraordinariamente talentoso Caetano é um indivíduo honesto, sempre teve preocupação com a desigualdade e não estava fazendo nada fora da lei. Mas, obviamente, não parece sensato dinheiro público, num país pobre, bancar o divertimento dos ricos.
O país vem aprendendo, aos poucos, a discutir a aplicação do imposto -e aí se inserem desde as descobertas sobre os laços sagrados da família Sarney, passando pelos patrocínios (inclusive para manter empregos de ex-sindicalistas) da Petrobras, até os bilhões para aumentar a folha de pagamentos.

O Vale Cultura tem o mérito de ir direto para o bolso do trabalhador, justamente quem mais precisa -é parecido com a vantagem do Bolsa Família, que acerta, em geral, no foco dos mais vulneráveis. Vai usá-lo bem?
Minha desconfiança está baseada na experiência iniciada, no ano passado, por estudantes dos cursos de comunicação da PUC, USP, Mackenzie e Metodista, da qual participo. Eles se dispuseram a montar um banco de dados na internet, batizado de Catraca Livre, reunindo as ofertas culturais e educativas gratuitas ou a preço popular da cidade de São Paulo. Com esse banco de dados, jovens da periferia (favela de Heliópolis, por exemplo) foram treinados a saber usar as informações.
A quantidade de ofertas de qualidade é muito maior do que se imaginava, mas muitas delas eram pouco frequentadas pelas pessoas de menor poder aquisitivo. Não poucas ficam vazias. Na prática, é como se já existisse o Vale Cultura, bancado pelas mais diversas entidades como Sesc, Sesi, governo estadual e municipal, além de universidades e projetos patrocinados por empresas. A frequência às bibliotecas municipais é baixa -e isso explica, em parte, o absurdo de ficarem fechadas aos domingos e até aos sábados.
Há uma chance grande de boa parte do dinheiro do Vale Cultura ir para produtos e eventos de alto impacto popular, mas com baixo teor educativo -livros de autoajuda, filmes de comédia ou shows de música sertaneja ou pagode, por exemplo.

Leitores devem estar considerando esse comentário elitista. Se é para lançar um programa dessa envergadura, deveríamos perguntar se o trabalhador irá a bons espetáculos, exposições ou concertos. Cada um faz o quiser com seu dinheiro. Mas recurso público não deveria sustentar livros de autoajuda, comédias românticas ou grupos de pagode. Nem aos shows de Caetano, Maria Bethânia ou Ivete Sangalo -aliás, nem camarote de Carnaval de Gilberto Gil.
Faria mais sentido se essa bolsa fosse dada para alunos de escolas públicas, com direito a levar os pais aos eventos culturais dentro ou fora da escola, e se ensinasse os professores a usar a cultura acoplada ao currículo escolar -aliás, esse é o modelo do projeto Mais Educação, disseminado pelo país pelo próprio governo federal. Em São Paulo, ir aos museus, cada vez mais interativos, como os do futebol, ciências e língua portuguesa, virou objeto de desejo dos alunos mais pobres.
Talvez não seja o melhor jeito de agradar aos artistas e ganhar votos, mas é o melhor para formar plateias.

PS – A experiência realizada pelos universitários com os jovens da periferia, treinados para usar os recursos da cidade, mostrou que, aos poucos, uma parte deles vai tomando gosto em ampliar seu repertório. Basta ver o exemplo de Heliópolis, onde se nutre o hábito de ouvir concertos por causa de orquestra sinfônica. A rádio da favela começou a anunciar, neste ano, 15 vezes por dia, as atividades culturais gratuitas e populares -e já começa a se ver maior interesse dos jovens.

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