É muito mais frequente do que se imagina a imprensa publicar, confiando nas fontes, informações que depois se revelam falsas.

A mais recente é a que envolve a banda “Móveis Coloniais de Acaju” [muito prazer, soube da existência devido à polêmica], cujos integrantes  inventaram uma história para justificar o nome do grupo  musical.

Algumas vezes o informante o faz de propósito, para auferir algum tipo de benefício; de outras, por desconhecer o assunto de que fala; e há os que fazem apenas com o objetivo de se divertir à custa da credulidade [e desconhecimento] dos jornalistas, que deveriam ser céticos [e verificadores] por natureza. Se serve de consolo, mesmo os jornalistas mais experientes, já repassaram alguma informação incorreta.

Antes de entrar no caso do “Móveis”, relembremos alguns casos recentes: a) um internacional, b) um nacional [que virou internacional] e c) um “cearense” [que virou nacional]:

1. “Quando eu morrer, haverá uma valsa de despedida tocando em minha cabeça, que só eu poderei ouvir”, a frase atribuída ao compositor Maurice Jarre, morto em março deste ano, foi reproduzida pelos meios de comunicação em vários países do mundo, mesmo os mais qualificados, como The Guardian e o portal da BBC. A frase, no entanto, fora inventada por um estudante irlandês,  que a postou na Wikipedia, para mostrar como os jornais divulgavam, sem checar, informações colhidas na rede mundial de compuradores. Shane Fitzgerald, de 22 anos, disse que esperava que blogs e alguns jornais utilizassem a frase, mas achou que as grandes publicações não confiariam na Wikipedia, sem verificar as informações nela divulgadas. [Já havia comentado o assunto neste blog.]

2. A partir de uma notícia, com fotos, publicada no início do ano no Blog do Noblat, jornais, TVs e rádios reproduziram que a advogada brasileira Paula Oliveira, grávida de três meses, havia sido atacada por neonazistas ao sair de uma estação do metrô, na Suíça. Nas fotos podia-se ver várias marcas no corpo da advogada, incluindo a sigla de um partido suíço considerado de extrema-direita. A divulgação provocou uma onda da revolta na imprensa brasileira acusando a “xenofobia” do país europeu. Em pouco tempo revelou-se a farsa: a moça não estava grávida e, ao que tudo indica, ela se automutilou. [A propósito, como andará esse caso? De acusadora, a advogada passou a suspeita e está respondendo à Justiça suíça, mas não se tem informação sobre o desenrolar do processo.]

3. A imprensa cearense, no início de 2006, foi sacudida pela exposição que faria na cidade, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um dos mais importantes artistas plásticos japoneses da atualidade: Souzareta Geijutsuka. Os jornais publicaram resenhas, informaram sobre as característas do artista, fizeram entrevistas. Tudo a que tem direito uma personalidade. Acontece que Souzareta era uma invenção do jovem artista plástico [este real] Yuri Firmeza.  A imprensa nacional deu destaque ao caso. Na ocasião, era ombudsman do O POVO e escrevi a coluna que poderá ser vista abaixo.

Móveis Coloniais de Acaju

Quanto ao caso da banda brasiliense, seus integrantes inventaram uma história, publicada no site do grupo, dizendo que o nome do grupo era uma homenagem à  “Revolta do Acaju”.  O “obscuro episódio da história do Brasil”, a “Revolta do Acaju”, teria ocorrido em 1813, quando “os índios javaés, que tradicionalmente usavam a madeira de acaju (cedro) para produzir móveis em estilo colonial, se uniram aos portugueses para expulsar da Ilha do Bananal (no atual estado do Tocantins) invasores ingleses que se apoderaram da região”.

As “explicações” no site da banda prosseguem: “O pior para aqueles homens foi ver a destruição sistemática de suas criações. Calcula-se que mais de meia tonelada de madeira, em forma de móveis coloniais e cachimbos xamanísticos tenham sido destruídos pelos ingleses”.

Mesmo sem ser historiador e nem especialista em pesos e medidas, observam-se duas pistas muito evidentes de que tudo não passava de uma brincadeira:

1. Você já ouviu dizer que alguma tribo indígena brasileira é ou teria sido alguma vez na história do Brasil produtora de móveis?

2. Meia tonelada [500 quilos] não representa nada em termos de quantidade de madeira beneficiada. Somente para se ter uma idéia, um caminhão pode carregar mais de 10 toneladas de madeira. Se você juntar o guarda-roupa, a cama e a penteadeira da sua avó, já deve dar os 500 quilos.

Apesar disso, vários jornais e revistas reproduziram a balela – segundo a matéria da revista Época -, que também caiu na pegadinha, e escreveu matéria para se explicar aos leitores.

A Época fez o que deve ser ser feito – e tem de ser louvada por corrigir seu erro em matéria de destaque -, mas podia ter passado sem as ironias [dizendo que o texto do site da banda é “cheio de erros de pontuação”] e também sem a lição de moral, dando um pito n os integrantes da banda, pois “muitos jovens estão acostumados a tomar como verdade tudo o que leem na internet”. [Pelo jeito, muitos jornalistas também.]

Pois é o seguinte: a arte não tem compromisso com a realidade; o jornalismo sim. Ninguém vai ao portal de uma banda de música para aprender história do Brasil; mas à imprensa, muito gente recorre para entender fatos atuais e históricos.

Veja a seguir coluna do ombudsman de fevereiro de 2006: “A arte de enganar”.

A arte de enganar
Plínio Bortolotti

O POVO – coluna do ombudsman: 12/2/2006

De férias, não acompanhei passo a passo aquela que deverá ser a maior polêmica do ano, ainda que se tenha pela frente um período eleitoral. A performance, brincadeira, intervenção artística – ou seja lá como se queira chamar – de Yuri Firmeza, teve força suficiente para ludibriar a imprensa cearense, que publicou como se fosse verdade uma suposta exposição do fictício artista japonês Souzareta Geijutsuka, só existente na imaginação de seu criador.

Para fazer os jornais caírem na, digamos assim, pegadinha, Yuri recebeu apoio oficial da direção do Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, local onde haveria a duvidosa exposição. Suponho que a fiança do órgão público, autenticando como verdadeiras informações falsas, tenha sido determinante para que o “jovem artista contemporâneo”, na descrição (real) de alguns críticos, tivesse sucesso em sua empreitada, com o objetivo aparente de “denunciar” a suposta preferência dos jornais cearenses por artistas “de fora” e um hipotético “descaso da mídia em relação às artes plásticas no Ceará”.

Antes de continuar – para evitar confusões e mal-entendidos –, duas coisas: 1) o fato de os jornais publicarem a notícia sem verificar a sua veracidade e, ainda, reproduzirem informações do release (nota distribuída à imprensa pela falsa assessoria de imprensa do artista inventado) como se fosse uma apreciação crítica, produzida pelas próprias redações, ao trabalho do fictício Souzareta, não tem justificativa aceitável. A responsabilidade pelo engano cabe aos jornais; em casos como esse, a atitude mais correta é assumi-lo sem subterfúgios – e nenhum dos argumentos que vou usar abaixo serve como atenuante a esse erro original; 2) não cabe questionar o “projeto” de Yuri Firmeza: uma das funções do artista é provocar incômodos; diferentemente do jornalista, ele não tem compromisso com a objetividade e nem com a “realidade”.

Abordagem

Dito isso vou tocar em algumas questões a mereceram ampliação na abordagem: a) a forma diferenciada como os diários cearenses encararam a polêmica; b) o modo como a imprensa “nacional” a noticiou; e c) a participação do Centro Dragão do Mar, por meio do Museu de Arte Contemporânea, no episódio.

Os jornais cearenses reagiram ao trote de forma diferenciada. Enquanto O POVO manteve uma postura aberta, sustentando o debate, tratando do assunto em editorial, entrevistando artistas e publicando artigos com diferentes pontos de vista sobre a questão, o Diário do Nordeste encerrou a polêmica logo que se revelou a farsa. Para o diretor-editor do Diário do Nordeste, Ildefonso Rodrigues, tratou-se de um “factóide” (fato irrelevante, criado com o objetivo de atrair atenção), por isso o jornal “preferiu não dar seqüência à polêmica”.

O diretor-geral de Jornalismo do O POVO, Arlen Medina, diz o seguinte: “O episódio foi desgastante, mas nos serviu para reorientar uma série de procedimentos internos em relação ao material que recebemos das assessorias de imprensa, principalmente das oficiais. Entendo que uma instituição pública (o Museu de Arte Contemporânea) abusou de nossa confiança e o jornal errou por não ter feito as devidas e necessárias checaens. Lamentei a forma como o caso aconteceu, mas nem por isso O POVO ignorou o fato e suas repercussões”.

Olhando por cima

Os “grandes” jornais do Sudeste trataram o caso com um ligeiro ar de superioridade, preferindo ironizar e tripudiar sobre o erro cometido pela imprensa cearense, abstraindo-se da discussão sobre os procedimentos jornalísticos ou sobre a função da arte. Tais jornais – O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, para ficar só nesses exemplos – não se deram nem mesmo ao trabalho de consultar editores ou repórteres do O POVO ou do Diário do Nordeste para redigir notícias sobre o assunto. Isto é, cometeram o mesmo pecado apontado nos outros: a falta de verificação, de “checagem”, para usar o jargão das redações, desconsiderando a necessidade de “ouvir o outro lado” – medida inscrita em todos os códigos de ética que regem o ofício dos jornalistas e das empresas de comunicação.

Tais deslizes não se circunscrevem à imprensa nordestina. O caso clássico, mas não único, das trapalhadas jornalísticas, é o do “boimate”, um suposto cruzamento transgênico do boi com tomate, experiência que permitiria “sonhar com um tomateiro do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate”, segundo noticiou a revista Veja em sua edição de 27/4/1983, reproduzindo uma brincadeira tradicional de 1º Abril da revista inglesa New Science.

Falamos de casos cômicos, sem maiores conseqüências. Mas o que dizer de erros graves e letais, como o do caso da Escola de Base (em São Paulo) ou o fato de o New York Times ter sustentado a versão do presidente americano George W. Bush de que haveria armas de destruição em massa no Iraque para justificar a invasão ao país?

Dragão

Se os jornais erraram, também não se pode absolver a direção do Museu de Arte Contemporânea, cujo diretor é Ricardo Resende, por ter atestado informações inverídicas para dar ares de veracidade à invenção perpetrada por Yuri Firmeza. Resende se defende dizendo dirigir um museu de arte contemporânea, que “tem de estar aberto à experimentação artística”, não podendo nele existir a idéia de “censura ou limitação”. Ok, mas é parte indissociável, tradicional e histórica do fazer jornalístico, desenvolver relações de confiança com determinadas fontes – e disso elas têm consciência. Nesse equilíbrio se sustenta boa parte da produção jornalística – e assim é em todos os jornais do mundo. De forma planejada, o diretor do museu rompeu o delicado liame, induzindo os jornais ao erro.

Resende não deixa, porém, de elogiar a maneira como O POVO, conduziu a questão, dando fluência à polêmica: “Foi uma postura corretíssima e muito madura, permitindo conversar, levando aos leitores a discussão sobre a arte contemporânea”.