Engolido pelas labaredas - David SedarisEm uma dessas bancas de livraria, que eles usam para fisgar clientes¹, abri um livro e li o seguinte: [veja abaixo]. Era “Engolido pelas labaredas”, do americano David Sedaris.

Me chamou atenção e prosa ligeira e esperta e comprei por impulso², sem saber quem era o sujeito.

O que consegui descobrir, momento da compra, era aquilo que estava nas orelhas: que ele já havia escrito outros livros e era uma espécie de queridinho das platéias “cults”, que lotam suas “concorridíssimas leituras ao vivo”, de “seus próprios textos”, como ressalva a dita orelha, para deixar bem claro que Sedaris não é, assim, uma espécie de Cid Moreira.

De fato, um bom livro para quem gosta de humor, que alguns classificariam de “refinado”, mas eu prefiro chamá-lo de humor não-truculento.

Aviso que não sou um cara indicado para fazer críticas de livros de humor [e de nenhum outro tipo, eu acho]: sou capaz de passar um show inteiro do Chico Anísio & Tom Cavalcante, sem dar nenhuma risada, como já passei, quando ganhei umas entradas e achei que era um desperdício não cumprir a obrigação de comparecer. [Já com o “Mister Bean” e “Os monstros” eu consigo sorrir com o non-sense das situações.]

Mas o caso aqui é David Sedaris, que escreve de modo vivaz e cortante. Ele próprio é a principal vítima de sua ironia impiedosa, que vira os personagens pelo avesso, mesmo quando o diálogo se dá em uma rápida corrida de táxi.

Obviamente, você não deve esperar um livro de piadas, que você vai decorar e contar em uma roda de amigos, que vão rir para não perder o freguês. Para fazer algum sentido, será preciso ler suas crônicas – com cerca de 20 páginas cada uma – do começo ao fim. [Obs: Não é obrigatório ler todas. O que eu quero dizer é que para compreender o sentido da coisa, você precisar ler aquele conto que você estiver lendo do começo ao fim.]

Nos tempos que correm, quando se considera o CQC “humor inteligente”, Groucho & eu - Groucho Marxmesmo que sua especialidade seja aplicar golpes abaixo da linha da cintura, ler Sedaris pode ter o efeito de você encontrar uma coca-cola no deserto, a última [a piada é velha, mas foi a única que me ocorreu: contentem-se com ela].

Sedaris também se revela um ótimo sucedâneo para as velhas revistas que habitam os consultórios de médicos e dentistas. Você sabe, a principal especialidade de médicos e dentistas é fazer você esperar. Assim se você for arrancar um dente ou visitar um proctologista, recomendo a você levar “Engolido pelas labaredas”.

…………

1. Não sei se todo mundo sabe, mas a distribuição de livros nas vitrinas e bancas das grandes livrarias, não acontece aleatoriamente e nem segue um propósito elevado de lhe mostrar os lançamentos mais importantes. As editoras mais bem providas de recursos pagam pelo espaço que ocupam nas bancas. Quanto mais destacado o espaço, mas caro elas pagam.

2. Depois de ter comprado o livro [R$ 49,00] fiquei pensando: é o tipo de livro que eu não preciso guardar [Pois apesar de bom, não é nenhum “Groucho & eu”, de Groucho Marx: este sim, faz você rir.] Então, se houvesse uma versão eletrônica, digamos, por R$ 5,00, eu teria feito uma boa economia. Mas voltei atrás depois de ter pensado no consultório médico e de ter lido boa parte do livro na Prainha do Canto Verde, olhando o mar da casa onde eu estava. Percebi, então, que o papel ainda não pode ser substituído pelo livro eletrônico, pelo menos enquanto este não se popularizar, e depois de acharem um aparelho que seja imune à maresia e à areia.

Cidade e campo [trecho] David Sedaris

Era final de tarde quando chegamos ao LaGuardia. Peguei um táxi perto da esteira de bagagem e entrei em algo que cheirava como um coquetel tropical de mau gosto, resultado de um odorizador de ambiente sabor coco pendurado no espelho retrovisor. É odioso ser infantil nesse tipo de situação, por isso abri um pouco a janela e dei o endereço da minha irmã em West Village.

“Sim, senhor.”

O homem era estrangeiro, porém não tenho idéia de que país. De um desses países trágicos, imaginei, alguma terra assolada por serpentes e tufões. Mas na verdade metade do mundo é assim. Tinha a pele escura, mais para o marrom que para o verde-oliva, e cabelos pretos e espessos tratados com alguma loção oleosa o pente tinha deixado sulcos profundos que corriam pela nuca e desapareciam embaixo do colarinho puído da camisa.

O táxi saiu do meio-fio, e quando nos misturamos ao tráfego o motorista abriu a janela que separa o banco da frente dos de trás e perguntou o meu nome. Eu disse meu nome e ele olhou para mim pelo espelho retrovisor, dizendo: “Você é um homem bom, David, não é? Você é bom?”

Eu disse que era um cara legal, e ele continuou.

“David é um bom nome, e Nova York é uma boa cidade. Você não acha?”

“Acho que sim”, respondi.

O motorista sorriu timidamente, como se eu tivesse feito um elogio, e fiquei imaginando como seria a vida dele. As pessoas leem coisas, artigos de jornal e coisas do gênero, e criam uma imagem dos incansáveis trabalhadores imigrantes que andam por aqui – ou dirigem por aqui, com mais frequência. O homem não devia ter mais de 35 anos, e depois do trabalho imaginei que iria a uma escola e estudaria até não conseguir mais manter os olhos abertos. Algumas poucas horas em casa com a mulher e os filhos e ei-lo de volta ao banco do motorista, e assim por diante, até conseguir um diploma e retomar a vida como radiologista. A única coisa que o limitava era o sotaque, mas isso provavelmente desapareceria com tempo e esforço.

[…]

Em seguida ele falou alguma coisa que não entendi direito, e quando pedi para repetir ele ficou agitado e virou-se no assento, dizendo: “Qual é o problema David? Você não escuta quando as pessoas falar?”

Falei que meus ouvidos estavam tampados por causa do avião, embora não fosse verdade. Eu podia ouvi-lo muito bem. Só não conseguia entender o que dizia.

“Eu perguntei o que faz como profissão”, ele repetiu. “Você ganha muito dinheiro? Vejo pelo seu paletó que sim, David. Sei que você é rico.”

De repente meu paletó esporte pareceu bem melhor. “Eu me viro”, respondi. “Isso quer dizer que consigo me manter, o que não é o mesmo que ser rico.”

Então ele perguntou se eu tinha uma namorada, e quando respondi que não, ele juntou as sobrancelhas espessas e fez um som como tsc. “Ah, David, você precisa de uma mulher. Não pelo amor, mas pela xoxota, que é uma coisa necessária prum homem. Como eu, por exemplo. Eu trepo todo dia.

“Ah”, falei. “E hoje é… terça-feira, certo?” Eu tinha a esperança de fazer mudá-lo de assunto – talvez para os dias da semana –, mas ele devia estar cansado das lições de inglês.

“Como é que é essa história de que você não precisa de xoxota?”, perguntou. “O seu pau não fica duro?”

“Como?”

“Sexo”, ele disse. “Ninguém nunca falou com você sobre isso?”

Peguei o New York Times da sacola e fingi estar lendo, um ato que parece ter esclarecido tudo.

“Aaah”, disse o motorista. “Já entendi. Você não gosta de xoxota. Você gosta de pinto. É isso?” Aproximei mais o jornal do rosto, mas ele enfiou o braço pela janelinha e deu um tapa nas costas do banco. “David”, falou. “David, escute quando estou falando com você. Eu perguntei se você gosta de pinto.”

“Eu só trabalho”, respondi. “Trabalho, depois vou para casa, e depois trabalho um pouco mais.” Eu estava querendo dar um bom exemplo, tentando ser a pessoa que tinha imaginado que seria, porém era uma causa perdida.

“Eu trepo todo dia”, ele se gabou. “Duas mulheres. Tenho uma esposa e outra mulher pro fim de semana. Duas xoxotas. Tem certeza de que não gosta de trepa-trapa?”

Se me forçarem, eu consigo conviver com a palavra “xoxota”, mas “trepa-trepa” estava me deixando enjoado. “Essa palavra não existe”, disse a ele. “Você pode dizer que trepa, só que trepa-trepa não faz sentido. Ninguém fala desse jeito. Você nunca vai progredir com essa linguagem.”

O tráfego engrossou por causa de um acidente, e quando reduzimos a velocidade o motorista passou a língua nos lábios. “Trepa-trepa”, repetiu. “Eu trepo-trepo-trepo-trepro.”

Estivéssemos nós em Manhatam, eu poderia ter descido e pegado outro táxi, contudo ainda estávamos na rodovia, então, que escolha eu tinha a não ser ficar firme e olhar com inveja para os veículos de resgate que se aproximavam? Afinal o tráfego começo a andar, e eu me resignei a agüenta mais vinte minutos de tortura.

[…]