O ombusdsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, comentou na coluna de domingo [29/11/2009] o artigo de Cesar Benjamin [trecho reproduzido abaixo], que acusa o presidente de ter tentando “subjugar” sexualmente um colega de cela quando Lula esteve preso na década de 1980.

Benjamin não viu a suposta cena. Segundo ele, o próprio Lula teria lhe contado o episódio, em 1994.

Pois bem, o ombudsman Lins da Silva diz que “não faz parte do escopo de trabalho do ombudsman emitir juízo de valor sobre textos opinativos”, mas diz concordar “inteiramente” com um dos leitores que lhe escreveu fazendo a seguinte observação: “Não há outra opção para ao jornal que publica artigo tão impactante quanto o de César Benjamin que a de, com suas equipes, tentar reconstituir os fatos narrados pelo autor”.

E, pelas palavras do próprio ombudsman, “é indispensável oferecer ao outro lado espaço e destaque similares para defender pontos de vista opostos ao do artigo de sexta feira”.

Comentário

1. De fato, não cabe a um ombudsman julgar opinião manifestada em artigos. Mas, para acusação de tamanha gravidade, que atinge não apenas o presidente, mas terá repercussão em toda a sua família, era preciso que o editor exigisse mais do que a simples declaração de um ex-militante do PT para publicar o texto. Benjamin não manifesta uma opinião, relata um suposto fato, o que é verificável.

1.1. Portanto, no que se refere à questão factual, o ombudsman pode e dever opinar. Observem que não se trata de uma “opinião” de César Benjamin.  Ele não disse que Lula é feio ou bonito; que seu governo é bom ou ruim: isso é opinião. Ele ralata um fato que teria acontecido. Afirmou que o agora presidente tentou estuprar um colega de cela. Isso é verificável e parece muito pouco jornalístico que isso tenha sido publicado sem a mínima checagem [pra usar o jargão das redações].

2. O ombudsman apela agora para que se “reconstitua o fato narrado”. Isso era condição prévia para a publicação do artigo. Confirmado, publica-se. Não se conseguiu provar ou há dúvida razoável, ponha-se no lixo. Uma afirmativa dessas, pode levar consequências gravíssimas do ponto de vista pessoal a Lula e sua família. [Não falo aqui nem do prejuízo político, que é superável, mas a marca de “estuprador”, mesmo falsa, pode ser indelével.] Isso não se faz, é o antijornalismo: atira-se primeiro e pergunta-se depois.

3. Depois o ombudsman afirma que é “indispensável” oferecer ao “outro lado” espaço e destaque similares para defender “pontos de vista opostos aos do artigo” de César Benjamin. Aqui o negócio já se torna risível, pois não se trata de “ponto de vista”, mas repito, de um fato que, como diz o ombudsman, pode ser reconstituído, verificado. Agora o negócio está neste pé: um diz: “Você é estuprador”; o outro: “Não sou”. “Você é batedor de carteira”; o outro: “Não, não sou”. “Você bate na sua mãe”; o outro: “É mentira”. “Você é pedófilo”, o outro: “Nunca fui”. Estamos falando de jornalismo ou de briga de rua?

Ora, façam-me o favor.

[Eu até posso estar enganado, mas o artigo, longuíssimo para os padrões da Folha de S. Paulo – 1.755 palavras, 10.561 caracteres – não foi publicado assim, digamos, casualmente. O trecho que fala de Lula está ensanduichado entre uma longa introdução e outra longa conclusão, com César Benjamin narrando lances de sua militância na esquerda e do período que passou na prisão,  na década de 1970. Creio que a publicação deve ter sido precedida de negociação com o autor – e o editor deve ter tido tempo para refletir sobre assunto.]

Trecho do artigo de César Benjamin

Os filhos do Brasil
César Benjamin

São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção dos programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa campanha.

Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos Estados Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula gravava os programas, mais ou menos, duas vezes por semana, de modo que convivi com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse ainda visto o candidato.

Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele, conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas eu não queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório, durante um almoço.

Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo nome também esqueci. Lula puxou conversa: “Você esteve preso, não é Cesinha?” “Estive.” “Quanto tempo?” “Alguns anos…”, desconversei (raramente falo nesse assunto). Lula continuou: “Eu não aguentaria. Não vivo sem boceta”.

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido. Chamava-o de “menino do MEP”, em referência a uma organização de esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência do “menino”, que frustrara a investida com cotoveladas e socos.

Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia ter sido, digamos assim, o “menino do MEP” nas mãos de criminosos comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não obstante essas condições, sempre me respeitaram.

O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro. Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo. Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.

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CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em 1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com 17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da Editora Contraponto e colunista da Folha.