“Não me importa o que disse o STF. Ele teve a chance de fazer e fez. Eu não dei palpite. A decisão é minha. Até lá [a publicação do acórdão] não tenho comentários a fazer”.
As palavras são do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, divulgadas agora à tarde pela Agência Brasil. A decisão a que Lula se refere é sobre a extradição para a Itália de Cesare Battisti, condenado em seu país por crimes praticados quando integrava o grupo de esquerda Proletários Armados pelo Comunismo, na década de 1970.
Lula deu a declaração depois de o Supremo Tribunal Federal ter alterado sua decisão anterior que dava à Presidência da República poderes plenos para decidir pela permanência do ex-militante no Brasil ou pela sua extradição.
Posteriormente, STF retirou o trecho que classificava a decisão de “ato discricionário” do Presidente da República. Desse modo a única alternativa que sobraria para Lula seria enviar Battisti à Justiça italiana, pois segundo o STF, o tratado de extradição com a Itália teria de ser cumprido.
O presidente do STF, Gilmar Mendes disse que “não se cogita” que a decisão seja diferente, conforme matéria publicada no O POVO.
Comentário
Até agora eu tinha dúvida sobre a decisão de Lula. Depois da mudança de rumos do STF, tendo a achar que o presidente vai manter Battisti no Brasil.
Fazer de modo diferente seria submeter-se aos humores do STF que ora decide uma coisa, ora afirma outra diferente.
Vejam: não estou dizendo que se deva descumprir uma decisão do STF, pois em uma democracia deve-se respeitar decisões da Corte Suprema; ainda que discordando ou sob protesto, o que também é democrático.
Mas, nesse caso, qual decisão respeitar?:
a) a inicial que atribuía ao presidente o poder pleno de conceder ou negar a extradição?
ou
b) a decisão “reformada” afirmando que o presidente é que decide, mas só pode decidir de um jeito?
Mesmo sendo leigo no assunto, me parece que se abre uma avenida jurídica para que o presidente decida de um modo ou de outro, respeitando a lei e o STF.
E, pelo andar na carruagem, Lula deve decidir-se de um modo que deixe bem claro que a democracia também pressupõe que os poderes são harmônicos, mas independentes.
A propósito,
Extradição inconstitucional
Dalmo Dallari, Jornal do Brasil
RIO – No Estado democrático de direito, como é o Brasil, a Constituição é o conjunto normativo superior, que rege todos os atos jurídicos que forem praticados por qualquer autoridade ou qualquer órgão público brasileiro. Isso tem aplicação tanto para atos que sejam praticados e produzam efeitos no âmbito nacional, quanto os atos de qualquer natureza praticados num foro internacional ou para produzirem efeitos além das fronteiras nacionais. A Constituição brasileira é superior aos acordos e tratados que forem celebrados por qualquer membro do governo brasileiro, pois nenhuma autoridade pode celebrar validamente um acordo ou assinar um tratado que seja contrário a alguma disposição da Constituição brasileira. É oportuno lembrar e ressaltar a superioridade da Constituição brasileira, neste momento em que membros do governo italiano e alguns brasileiros a eles submissos pretendem que ao decidir sobre o pedido de extradição do italiano Cesare Battisti o tratado de extradição assinado pelos governos do Brasil e da Itália prevaleça sobre a Constituição brasileira.
Essa tentativa de fazer prevalecer a vontade do governo italiano sobre a vontade do povo brasileiro, consagrada na Constituição, já foi externada e repelida várias vezes e agora tomou novo alento porque o ministro Eros Grau, dando maior precisão ao voto proferido no julgamento do pedido de extradição de Battisti, esclareceu o que quis dizer quando falou em decisão discricionária do presidente. Externando o que, para as pessoas bem informadas e de boa-fé, era óbvio, disse agora o eminente ministro que jamais teve a intenção de afirmar que o presidente da República poderá decidir arbitrariamente, mas deverá fundar-se na Constituição. Assim, pois, o ministro Eros Grau não modificou o seu voto, mas apenas explicitou o óbvio: na decisão sobre o pedido de extradição, que é de sua competência privativa, como diz a Constituição e foi reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente da República deverá ter em conta o que determina a Constituição brasileira.
O exame de todos os elementos jurídicos envolvidos nas circunstâncias de fato e nos processos judiciais relativos ao caso Battisti e ao pedido de sua extradição leva necessariamente à conclusão de que o pedido de extradição não poderá ser atendido pelo governo brasileiro, devendo, portanto, ser recusado pelo presidente da República, pela existência de claros obstáculos constitucionais ao atendimento do pedido. Com efeito, está expresso nos autos do processo em que Cesare Battisti foi condenado na Itália que ele foi acusado de ter praticado atos que configuram, ao mesmo tempo, “homicídio e subversão”. Não se diz, no processo, que esses crimes foram praticados autonomamente, mas, ao contrário disso, afirma-se que os mesmos atos configuraram os dois crimes. Ora, se os atos foram praticados na Itália e as autoridades italianas os qualificaram como crime político, a eventual opinião divergente dos tribunais brasileiros não tem força jurídica para modificar a qualificação dada pela Justiça italiana.
Deixando de lado, neste momento, o fato de que jamais se comprovou que Battisti tenha, efetivamente, cometido qualquer homicídio e que a acusação baseou-se exclusivamente numa delação premiada, o dado essencial é que as próprias autoridades italianas afirmam o caráter político das ações de que Battisti foi acusado, pois subversão é crime político, na Itália e no Brasil. Ora, a Constituição brasileira diz expressamente, no artigo 5º, inciso LII, que “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião”. Só isso já torna inconstitucional a extradição de Cesare Battisti. Outro obstáculo constitucional intransponível é o fato de que a Constituição brasileira, pelo mesmo artigo 5º, no inciso XLVII, dispõe que “não haverá pena de caráter perpétuo”. Ora, o tribunal italiano que julgou Battisti condenou-o à pena de prisão perpétua. Essa decisão transitou em julgado, e o governo italiano não tem competência jurídica para alterá-la, para impor uma pena mais branda, como vem sendo sugerido por membros daquele governo. A Constituição da Itália consagra a separação dos Poderes e assim como o presidente da República do Brasil está obrigado a obedecer a Constituição brasileira o mesmo se aplica ao governo da Itália, em relação à Constituição italiana. Em conclusão, no desempenho de sua atribuição constitucional privativa o presidente Lula deverá decidir sobre o pedido de extradição de Cesare Battisti. E respeitando as disposições da Constituição brasileira, como é seu dever, deverá negar o atendimento do pedido, pela existência de impedimento constitucional.
Dalmo Dallari é professor e jurista.
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/12/17/e17128013.asp
22:48 – 17/12/2009