*Foto de Drawlio Joca, da série "Periferia do Círio". Veja mais em http://www.flickr.com/photos/drawliojoca

Meu artigo semanal publicado na edição de 28/10/2010, no O POVO.

Decrescimento feliz

Plínio Bortolotti

É interessante ser surpreendido por argumentos sobre o quais nunca se havia pensado. Aconteceu quando ouvi, pela Rádio Senado, um discurso do senador Cristovam Buarque (PDT-DF).

Ele disse que estava na hora de se começar a debater o “decrescimento”, pois, disse o senador, os maiores problemas que o mundo enfrenta hoje advêm do crescimento da economia. Segundo ele, nos círculos intelectuais europeus já se espalha o conceito do “decrescimento feliz”. “A ideia de que é possível, e até necessário, reduzir o crescimento da produção material para que as pessoas possam viver mais felizes”.

Cristovam diz que o problema ambiental, o endividamento das pessoas, o aumento exagerado dos gastos públicos são conseqüência do crescimento da economia a qualquer preço. E que essa “bolha” vai estourar.
Para ele, a grande pergunta não é mais “como crescer”, mas “qual (tipo) de crescimento” queremos. Cristovam diz que a ânsia por crescimento tem de ser contestada, “pelo menos no nível do debate”. O senador diz que “a Europa inteira” e os Estados Unidos estão em crise, o que demonstraria não apenas uma crise “no modelo” , mas a crise de “um modelo” de desenvolvimento.

Ele dá um exemplo para mostrar o “absurdo da irracionalidade”, o fato de que toda vez que há um engarrafamento, aumenta o PIB. “Cada litro queimado de gasolina, mesmo que não o leve de um lugar a outro, aumenta o PIB. Quanto mais desperdício, mais aumenta o PIB. Há alguma coisa errada nisso. E ninguém vê.”

Cristovam levanta o assunto para dar um puxão de orelha (ele tem autoridade para isso) nos candidatos a presidente, que se abstiveram do debate sobre questões essências para o país.

Quanto ao mérito do que propõe Cristovam, sobre o “decrescimento feliz”, confesso não saber como isso seria possível, e nem ele disse no discurso. Mas que é um debate estimulante, isso é.]

[*Até o dia 30/10/10/2010, 21h23min, por um equivoco cometido por mim mantive uma foto de Guga Pimentel como se fosse de Drawlio Joca, pelo que peço desculpas ao autor. O próprio Drawlio alertou-me do equívoco.]

Veja o discurso completo do senador Cristovam Buarque.

[25/10/2010] O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT – DF). Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) – Sr. Presidente, Senador Acir Gurgacz, Senador Pedro Simon, Senadoras e Senadores, dentro de mais algumas horas, estará terminando o debate entre os dois candidatos a Presidente [ele se refere ao fim da campanha eleitoral], dois candidatos, é preciso reconhecer, que são personalidades com histórias marcantes: história de luta contra o regime militar, os dois – um presente aqui, o outro, desde o primeiro momento, embora tenha ficado um tempo obrigado, forçado no exílio. Ambos tiveram posições ativas em governos: um, Governador, Prefeito; a outra, Chefe da Casa Civil durante anos, Ministra durante anos.

Nós temos duas personalidades que vêm, os dois, do bloco democrático, e eu até diria que vêm do bloco das forças progressistas no Brasil.

Mas, lamentavelmente, a gente não está vendo o debate que deveria provocar o povo brasileiro a repensar o seu futuro: para onde vamos? O debate, no máximo, discute como avançamos mais rápido, mas não para onde avançamos.

E um dos exemplos disso, Senador Acir, é como não se viu o debate a respeito dos aspectos de política internacional. Não se viu o debate sobre o Brasil no mundo global, que é onde vamos estar nos próximos anos e décadas. Não houve esse debate. Não houve o debate de qual é o tipo de crescimento que vamos ter. Debateu-se como crescer mais. Não houve o debate, por exemplo, da crise que vive o mundo de hoje. E é sobre o que eu queria falar aqui.

Quem leu os jornais nesses últimos dias percebe, como disse um jornalista hoje, que o mundo está em chamas: Portugal, Espanha, a França cheia de greves, a Grécia com manifestações quase diárias, a Alemanha em crise, a Inglaterra com o maior corte de gastos que já se viu na história. A Europa inteira está em crise. Os Estados Unidos já vêm nessa crise desde 2008. A China ocupa um espaço que ninguém imaginava há vinte anos ou mesmo há dez anos.

Como disse o Ministro Mantega, numa expressão muito feliz que virou expressão internacional: nós vivemos uma guerra cambial. Dependendo do que cada país faz com a sua moeda em relação às outras, o Brasil sofre ou não sofre.

Isso não entrou no debate.

E não entrou, sobretudo, com a profundidade com que deveria, porque hoje esses países que estão em crise estão em crise de um modelo. Não é crise no modelo, não é crise da taxa de câmbio apenas, da taxa de juros apenas, do desemprego apenas: não é uma crise de taxas, é uma crise de concepção do modelo socioeconômico.

Por exemplo, a crise, quando arrebentou nos Estados Unidos, era um problema de endividamento, era um problema financeiro. As pessoas endividadas não pagaram aos bancos e os bancos começaram a quebrar. Aí dizem: não, não foi porque as pessoas se endividaram, é porque os bancos alavancaram empréstimos mais do que o risco, sob controle, permitia. Aí, vamos resolver essa crise financeira: vamos amarrar os bancos! Só que, quando amarram os bancos, impedem a alavancagem, impedem que eles emprestem muito, impedem que as pessoas se endividem, aí, a economia cai, a produção se reduz, o crescimento se estanca. Por quê? Porque o motor do crescimento é o endividamento.

Um dos jornais de ontem dizia que 28 milhões de brasileiros devem pelo menos R$5 mil. É muito! Se a gente considera que o Brasil tem uma economia muito concentrada na renda, R$5 mil é muito para 28 milhões de pessoas! Isso pode quebrar em qualquer momento. Quando alguns começarem a não pagar, outros não pagarão, os bancos quebrarão. É uma bolha, como se chama atualmente, uma bolha que qualquer coisa estoura.

Agora, vamos supor que a gente controle os bancos: aí, a venda de automóveis cairá, porque não se compra carro sem financiamento.

Mas não é só carro: é casa, são alguns objetos domésticos. Os produtos que dinamizam a indústria exigem financiamento. E financiamento força endividamento, e endividamento é arriscado, muito arriscado, na vida de uma pessoa, de uma família, e na vida de uma nação.

Ontem, provoquei um debate sobre isso e as pessoas disseram: “Mas não temos mais dívida externa.” Temos uma imensa dívida interna do Governo, mas não é essa a que mais me preocupa hoje: é a dívida privada das famílias brasileiras, para manterem o padrão de consumo necessário para dinamizar a produção. Veja a ordem que eu coloquei: o endividamento das famílias para consumirem e, com isso, dinamizar a produção, gerar emprego e voltar a provocar o consumo. Então, quando a gente controla a crise financeira, a gente gera uma crise de crescimento.

Mas não é só isso. A gente tem a conta dos gastos públicos, de que na Inglaterra hoje se está cuidando. A Inglaterra decidiu resolver o problema dos gastos públicos, que geram endividamento do Estado, que terminam gerando inflação, insegurança, redução no investimento. Aí eles decidiram fazer um corte: cortaram tudo, até 15% do dinheiro que financia a família real. Até a rainha Elizabeth está perdendo 15%! Só não cortaram educação.

Pois bem, cortaram os gastos, o que vai acontecer? O crescimento vai diminuir, porque uma parte substancial do consumo é o consumo do Estado, o Estado gastando para dinamizar a economia. Inclusive esta foi a solução sábia do Brasil, em curto prazo, no Governo Lula, para não entrar na crise: gastar mais dinheiro público, aumentar o financiamento pelos bancos estatais. Com isso, dinamizaram-se as compras, as vendas e, portanto, a produção. Só que, ao cortar os gastos públicos, você reduz o crescimento. E é isto que vai acontecer agora na Inglaterra ao controlar os gastos públicos: vai haver, provavelmente, uma redução na taxa de crescimento. O aumento da confiança do investidor talvez não seja suficiente para aumentar investimentos e produção se não há quem compre. Então, o problema cai no crescimento.

Tomemos um outro problema: o problema ambiental. Todo mundo sabe que temos uma crise ambiental, que estamos caminhando para o aquecimento global, para a depredação da natureza, que vai afetar a produção agrícola, o preço dos alimentos, até mesmo podendo gerar fome. Vamos controlar a produção para garantir o equilíbrio ecológico. Quem vai pagar o pato? O crescimento.

Por isso, quero dizer – e a gente não vê esse debate entre os candidatos – que o problema está no crescimento. É o crescimento que provoca, porque exige o endividamento, é o crescimento que provoca a crise ambiental. É o crescimento que, para ocorrer, exige gastos públicos desde a época de Keynes, 70, 80 anos atrás. Está no crescimento, mas ninguém ouve falar que o crescimento é um problema. A gente só ouve dizer que o crescimento é uma necessidade e que temos de ampliar, aumentar a taxa de crescimento. Ninguém diz que o crescimento é o problema, porque isso levaria a defender a posição que certamente é um desastre eleitoral: a ideia, que começa a tomar conta de diversos grupos intelectuais europeus, ainda não grupos políticos, da defesa de decrescimento feliz. É assim que eles chamam: decrescimento feliz. A ideia de que é possível, e até necessário, reduzir o crescimento da produção material para que as pessoas possam viver mais felizes, Senador Pedro Simon.

O problema do endividamento está no crescimento. O problema ambiental está no crescimento. O problema dos gastos públicos está no crescimento. Sem o crescimento, isso não ocorreria. Mas ninguém debate o crescimento. Ninguém discute que o crescimento precisa ser contestado pelo menos no nível do debate, o que é o mesmo que dizer “qual crescimento” e não “como crescer”. A pergunta é como crescer e não a que deveria: qual o crescimento.

E volto a dizer: não vi um candidato que seja tocar, nem de leve, em tema perigoso eleitoralmente, mas necessário, do ponto de vista do futuro do Brasil: essa ideia que toma conta da Europa aos poucos, nos meios intelectuais, de decrescimento como objetivo, decrescimento ampliando o bem-estar, decrescimento da produção, aumentando a satisfação das pessoas, aumentando a felicidade.

Tomemos um exemplo: a indústria automobilística. Nós comemoramos quando aumenta a produção de automóvel privado. Vamos analisar o que isto significa: primeiro, endividamento, porque não se vende automóvel sem dívida; segundo, engarrafamentos, porque não há como aumentar o número de carros sem engarrafamentos. Não há dinheiro que chegue para mudar a infraestrutura de um país, de uma cidade, na velocidade com que aumenta o número de carros.

E não esqueçamos que, para aumentar o sistema viário, para absorver o número crescente de carros, aumenta-se o gasto público e diminui-se o investimento em água, em saneamento, em educação, em saúde. Não há como você fazer uma estrada e um hospital. Você só pode gastar um saco de cimento uma vez. Não existe milagre de repetição de sacos de cimento. Já houve milagre de peixes, já houve milagre de pão, mas de cimento é impossível. Nós não temos como usar duas vezes um saco de cimento: ou estrada ou escola. Aí dizem: “Não, vamos fazer as duas!” Aí gera-se o problema ambiental. Para fazer dois sacos, em vez de um de cimento, você gera uma crise ambiental, por causa da energia que é necessário utilizar. Daí a ideia de que a gente pode fazer a população mais feliz com menos carros.

Senador Pedro Simon, não há nenhum exemplo mais absurdo da irracionalidade em que a gente vive do que o fato de lembrar que, toda vez que a gente tem um engarrafamento monumental, o PIB aumenta. Cada litro queimado de gasolina, mesmo que não o leve de um lugar a outro, aumenta o PIB. Quanto mais desperdício, mais aumenta o PIB. Há alguma coisa errada nisso. E ninguém vê esse debate entre os candidatos a Presidente.

A Senadora Marina tangenciou um pouco isso, falou um pouco nisso; ela falou da necessidade de mudar o modelo, ela falou no que a gente precisava se ajustar e não mais ficar procurando só o crescimento, mas também procurando o bem-estar, a felicidade, que pode vir do aumento da produção de bens imateriais que não poluem, que não geram a crise ambiental; do aumento da produção de bens de interesse público, que não exigem o endividamento privado.

O senhor mesmo entende bem disso. Um sistema de transporte público é muito mais eficiente de que basear o transporte de pessoas no automóvel privado. Mas fale isso e é derrota certa, porque as pessoas não querem debater. E a não debater, a gente vai sequestrando o futuro do País. O futuro do País está sequestrado pela incapacidade do debate eleitoral colocar na pauta os grandes problemas de longo prazo e globais do País.

E aí a grande tragédia da democracia. A democracia, que é o único sistema que merece ser defendido, é um sistema provinciano – o seu país, não o planeta – e de curto prazo: a próxima eleição e não a próxima geração. Não tem como ganhar-se eleição falando para a próxima geração, que não vota; nem para o mundo inteiro, que também não vota dentro de cada país.

Nós estamos amarrados – mais uma vez o verbo –, sequestrados. Nós estamos sequestrados pelo curto prazo e pelo provincianismo ou nacionalismo, se quiser, do ponto de vista de olhar só aqui para dentro, sem perceber que a dimensão dos nossos problemas é maior do que nós somos. É o mundo inteiro que traz e que leva nossos problemas. A gente não vê o mundo no debate dos presidenciáveis.

A gente não vê o aspecto da globalização sendo debatido neste processo eleitoral. A gente não vê o tema sobre o tipo de desenvolvimento que nós queremos. Antigamente dizia-se: é preciso desenvolvimento com distribuição de renda. Não é a distribuição de renda que vai mudar o modelo, apenas vai distribuir esse modelo mais, e aí vai trazer outros problemas, como meio ambiente, como endividamento crescente, sobre o qual aqui, aliás, quem mais falou sempre foi o Senador Mão Santa. Há cinco anos ele trazia o problema do endividamento dos brasileiros, que é onde pode estourar a bolha do nosso crescimento.

Então, Senador, eu quero usar esta tribuna, como usei até aqui e não vou continuar, para dizer que é uma pena que no debate presidencial que está terminando daqui a umas horas – 72 horas, eu creio – tenhamos perdido a chance de debater grandes temas nacionais, tenhamos ficado até abaixo dos temas pequenos. Nós ficamos num debate tão baixo que eu diria que foi subterrâneo, porque nem os problemas pequenos a gente debateu. A gente debateu não temas, porque não tem a ver com o Presidente da República, como é o caso do aborto, que não tem a ver com todos os brasileiros, como o tema da religiosidade. É um País que tem tantas religiões… Nós perdemos essa oportunidade.

Falo hoje porque não há mais tempo de recuperar. O debate está terminando.

Temos que esperar agora quatro anos para que, graças a esta maravilha que é a democracia, com todos os seus problemas no mundo de hoje, se possa ter um debate mais profundo, mais amplo, mais consistente – e eu vou usar a expressão “mais radical” –; um debate mais radical, de qual é o Brasil que a gente quer para o futuro. O que está aí não é o Brasil que a gente quer. O que está aí, mesmo que dê certo como se propõe, o crescimento puro e simples, não vai ser bom, vai trazer problemas embutidos, como a Europa está vivendo. Não esqueçamos que a Europa é o sonho da gente, e é um sonho que não vale a pena repetir, porque é um sonho que está em chamas, neste momento, na Inglaterra, em Portugal, na França, na Grécia. E não é uma questão do capitalismo, porque a União Soviética também viveu até mais essa crise do que os países do Ocidente capitalista.

Nós precisamos de um debate mais profundo. Quem sabe – e talvez seja um excesso de otimismo – a gente possa fazer esse debate aqui, Senador Pedro Simon, ao longo do próximo ano. Quem sabe, talvez os candidatos a Presidente se negaram a fazer isso, ou por um sentido de oportunidade de que isso não importa na eleição, ou porque não estavam preparados para dar esse salto. Vamos nós, pelo menos, tentarmos aqui. Porque se nem nós fizermos, aí, sim, poderemos despertar um dia dizendo: agora, já não adianta mais debater porque o estrago está feito, como se diz vulgarmente.

Era isso, Senador, que eu queria colocar e, apesar de tudo isso, o meu otimismo de que o novo Governo, qualquer que ele venha a ser, sempre é uma grande oportunidade para o Brasil.