Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor (clique para ampliar)

O projeto Diálogos O POVO & Cultura, em seu último encontro este ano, chama o Nordeste para um bate-papo. Convidou para a conversa o escritor Ronaldo Correia de Brito e o poeta, pesquisador da Cultura Popular Oswald Barroso. O Nordeste para cada um deles é mundo diferente a ser explorado e conhecido.

Falar sobre um “novo Nordeste” carrega bastante atualidade, depois da onde de preconceitos que se seguiu à eleição de Dilma Rousseff à Presidência.

O que uma nova geração de músicos, cineastas, dramaturgos e escritores tem a dizer sobre esse território de conflitos e encontros? Como esse novo modo de ver as coisas se reflete nas obras nas arte e na literatura?

Ronaldo

Ronaldo Correia de Brito nasceu no Ceara e mora em Pernambuco (Recife), onde tem a medicina como ofício. É escritor e dramaturgo. Escreveu os livros “As noites e os dias”, “Faca”, “Livro dos homens”. Com o romance “Galileia” ganhou o Premio São Paulo de Literatura em 2009. Para o teatro, escreveu “Baile do Menino Deus”, “Bandeira de São João” e “Arlequim”. Este ano, lançou na Flip (Feira de Literatura de Parati, RJ) o livro de contos “Retratos imorais”.

Oswald

Oswald Barroso é jornalista, professor da Universidade Estadual do Ceara (Uece), dramaturgo, pesquisador da cultura popular nordestina. Escreveu vários livros voltados para a cultura popular e de estudos sobre o folclore. É poeta. Escreveu “O riso brincante”, “Os reis do Congo”, “Teatro como encantamento”, “Memorial do caminho”, “Dormir, talvez sonhar”.

Convite

O quê? Diálogos O POVO & Cultura – Projeto do O POVO com a Livraria Cultura, com realização de encontros quinzenais para debate de temas pertinentes à cidade e à cultura.
Quando? 1º de dezembro (quarta-feira),  com o tema “Um novo Nordeste entra em cena”
A que horas? 19h30min (chegue cedo para receber uma senha, pois o auditório tem limite de lotação)
Onde? Livraria Cultura (av. Dom Luís esquina com av. Virgílio Távora).

Veja entrevista que a jornalista Regina Ribeiro fez com Ronaldo Correia de Brito, publicada na edição de 15/10/2010 do O POVO

CONTOS DE LIBERDADE
REGINA RIBEIRO
O POVO – edição de 15/10/2010

Duas mulheres em preto e branco é o conto que abre a coletânea que compõe Retratos Imorais. Amigas desde o tempo em que eram estudantes de medicina em Recife, as duas encontram-se, agora, trancadas num quarto, onde uma planeja, com detalhes, a morte da outra enquanto refaz as pegadas do caminho trilhado por elas, anos a fio. Quando o leitor imagina que tudo se encaminha para o fim, eis que o narrador dá outro rumo à história.

Uma mistura que inclui uma boa dose de surpresa e uma pitada de incômodo, causados pela exposição de personagens múltiplos, que carregam consigo uma memória que quer libertar-se a todo custo, está presente nos 22 contos divididos em retratos: dispersos, de mães, de homens.

Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, diz que arrumou os textos do novo livro como um curador monta uma exposição de obras de arte. Experiência própria. Entre a medicina e a literatura, Ronaldo faz teatro e curadoria de exposições e só não faz cinema porque tem que dar expediente em dois empregos. Na década de 70 fez um documentário (Cavaleiro Reisado) e dirigiu um longa para TV Cultura (Lua Cambará).

Nada impede, porém, que seus textos tenham uma velocidade tal que se assemelham a imagens em movimento. Seja quando imagina acertos de contas de uma vida inteira, seja quando cria um novo Jó às voltas com perguntas que Deus teima em não responder, como é o caso do conto que dá origem ao nome do livro.

Retratos Imorais é uma espécie de livro de liberdade, segundo conta o autor. Ele diz que depois de Galileia rompeu com a “mordaça do universo sertanejo” e chegou às cidades. “Agora estou mais solto para escrever o que bem quiser e transitar por onde quiser”, afirma. Até mesmo deixar de lado o sertão, tema que Ronaldo deu vida nova nos livros anteriores – As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens – e que reconstruiu com maestria no primeiro romance, Galileia, com o qual arrebatou o prêmio São Paulo de Literatura, no ano passado.

O sertão, com seus personagens que transitam entre a valentia da memória e os segredos inconfessos – além de ser o palco dos tormentos distribuídos democraticamente entre ricos e pobres, homens e mulheres – dá lugar, em Retratos Imorais ao urbano, à cidade, mesmo que os dilemas humanos permaneçam intactos sob o asfato.

Em entrevista ao O POVO, Ronaldo Correia de Brito fala sobre o novo livro e revela como todas as artes o levam à escrita que ele escreve com “os olhos”.

O POVO – Retrato é algo que fica congelado. Um momento da vida que se faz estático. A literatura, pelo contrário, se move ao longo do tempo. Como você junta retrato e literatura?

Ronaldo – Sempre faço curadorias para exposições de pintores, aquarelistas, gravadores e escolho as obras de arte que vou expor a partir de um conceito. Quando expus o gravador Gilvan Samico, o conceito da mostra era a exatidão. Usei essa mesma técnica para selecionar os 22 contos desse novo livro. Todos eles reproduzem imagens, retratos variados, mas sempre em movimento.

OP- Recife é o cenário comum de muitos dos retratos que você registra no seu livro. Como o lugar dita a ordem das histórias que você conta?

Ronaldo – Acho que desde o romance Galileia rompi com a mordaça do universo sertanejo e cheguei às cidades, uma trajetória que também é a de minha vida. Nesse novo livro a paisagem predominante é o Recife, cidade onde moro há 41 anos. Se os meus personagens em paisagens de sertão já eram neuroticamente urbanos, agora estou mais solto para escrever o que bem quiser e transitar por onde quiser. É mais fácil refletir sobre questões atuais do mundo, na perspectiva de uma cidade grande e complexa como o Recife, do que preso a uma paisagem cristalizada, que nem mais existe.

OP – O cinema e a fotografia são referências constantes nos seus contos, assim como a psicanálise e o teatro. Quando lê os seus contos, como você observa essas referências criadas e recriadas?

Ronaldo – Eu sempre vi muito cinema, escutei novelas de rádio, vi teatro e escrevi para o teatro. Acho que faria cinema, mas não tenho mobilidade para isso, pois sou médico e trabalho em empregos fixos. Fui psicanalisado durante dez anos e fiz formação psicanalítica. Às vezes esqueço que estou escrevendo um romance ou conto e penso num roteiro de um curta metragem, como na narrativa Homem Sapo. Misturo as linguagens e por isso meus contos são impregnados de teatro, cinema, catálogos de exposições, imagens, muitas imagens. Escrevo com os olhos. Quanto à psicanálise, não existe literatura que não seja psicanalisada, desde Freud, ou desde Dostoievski.

OP – Por falar em recriação, muitos dos contos haviam sido escritos há anos e você os refez ou os atualizou. Como se deu esse reencontro com o texto?

Ronaldo – Reescrever é bem pior do que escrever. Dá mais trabalho, dói revisitar textos guardados. Reescrever é escrever duas vezes. No conto Romeiros com sacos plásticos, bem antigo, narro a trajetória de uma romeira de Juazeiro do Norte, assunto que conheço e ao qual sempre volto. Vivi no Crato e no Juazeiro e fiz algumas romarias viajando em pau de arara. A primeira história se limitava a uma narrativa linear, sem muitas intromissões do autor. Senti necessidade, depois de trinta e dois anos, de trazer a ação para um novo contexto, um Juazeiro do Norte desfigurado por sacos plásticos e motos. Um fotógrafo francês, Patrick Bogner, teve a mesma impressão que eu. Nas fotos dele, os romeiros estão sempre com sacos plásticos nas mãos. O meu reencontro com os textos se dá num presente desfigurado, não sei se melhor ou pior do que eu vira antes.

OP – O conto Toyotas azuis e vermelhas traz consigo um discurso metaliterário que compreende a escrita, a morte, o autor. Como você, como autor, lida com a ideia de que a escrita mata o próprio autor?

Ronaldo – Escrevemos para esquecer, para nos livrarmos da memória. Quando nos desfazemos de uma narrativa, o que acontece depois que publicamos um livro, sentimo-nos aplacados, em parte aliviados das lembranças que nos alucinavam e fustigavam. Além disso, os textos deixam de ser nossos, não nos pertencem mais. Só o leitor pode recriá-los com sua leitura. A memória azucrinante passa a incomodar o juízo de outro. Felizmente.

OP – Ainda sobre esse conto, o narrador em algum momento fala: “Todas as espécies merecem sobreviver. Os escritores também”. Como você analisa a fala do narrador?

Ronaldo – Nem lembrava dessa passagem. Você tem certeza de que a escrevi? Nunca retorno aos meus livros. Uma vez um leitor me mandou um livro todo anotado, para o meu autógrafo. Senti verdadeiro constrangimento em abri-lo, pois já não me pertencia, era de outra pessoa, que o estava reescrevendo. Como já falei anteriormente, os escritores sobrevivem apenas através dos leitores. Nós merecemos viver, sendo lidos.

OP – Como você lê Borges? Espiando a si próprio, tal qual o personagem do conto Homem borgiano espreitando o lobo?

Ronaldo – Borges, depois da Bíblia, foi a melhor descoberta literária de minha vida. Talvez Borges seja um narrador bíblico, infinito, e por isso eu goste tanto dele. Acho que me filio a essa tradição de narradores bíblicos, contidos e ao mesmo tempo exaltados, e olho Borges como o escritor que eu gostaria de ser. Começamos a escrever assim, desejando ser como alguém que admiramos. Um dia descobrimos nossa voz narrativa, o ritmo próprio. E aí nos tornamos também escritores.

OP – Eu o ouvi falar sobre o processo de criação do conto Homem folheia álbum de retratos imorais. No final, você disse que nunca sabe como a história vai se desenrolar. Embora, isso seja o mistério da literatura, como você lida com esse mistério?

Ronaldo – É verdade, nunca sei mesmo. Nesse conto que você refere, passei anos pensando na história, mas não descobria o ritmo adequado. Emperrei, não saía do lugar. Já escrevera uma crônica sobre o personagem Claudiney Silva, narrador do conto, para a revista Continente. Tanto a crônica como o conto se baseia na história real de um paciente meu. A crônica era dura, não agradou e fui demitido da Continente. Quando li a história de um judeu no gueto de Varsóvia, encontrei o fio narrativo que buscava. Escrever é essa loucura, o mesmo que atravessar um rio caudaloso. Pensamos em sair num ponto e chegamos a lugar bem diferente.

OP – A partir do conto Homem buscando a cura, me responde: quem você acha que tem mais poder de curar: a medicina ou a literatura?

Ronaldo – Eu não acredito em cura definitiva. Há um ponto de equilíbrio dos sintomas em que é possível tocar a vida. Ou amar e trabalhar, como refere Freud. Tanto a medicina como a literatura pode fazer bem. Embora eu prefira a literatura na perspectiva de Kafka, como causadora de transtornos. A doença também é um transtorno que a medicina busca equilibrar. Então, vamos usar as duas panacéias: literatura e medicina.