Edição de 1974 (esq) e a edição de 2004 (clique para ampliar)

I

Não sei por que me chamou a atenção a edição barata de um livro, quando flanava por um sebo em São Paulo, no ano de 1979. A capa sofrível não justificava uma folheada nas manchadas folhas de papel jornal, de uma edição mal acabada. Mas uma rápida olhada nas duas primeiras páginas indicava que eu descobrira algo interessante:

«Naziazeno encaminha-se então para dentro de casa. Vai até ao quarto. A mulher ouve-lhe os passos, o barulho de abrir e fechar um que outro móvel. Por fim, ele aparece no pequeno comedouro, o chapéu na mão. Senta-se à mesa, esperando. Ela lhe traz o alimento.

— Ele não aceita mais desculpas…

Naziazeno não fala. A mulher havia-se sentado defronte dele, olhando-o enquanto ele toma o café.

— Vai nos deixar ainda sem leite…»

É em torno desse motivo – a busca desesperada de um pequeno funcionário público para conseguir cinqüenta e três mil réis para pagar o leiteiro – é que vai se desenvolver o romance “Os ratos”, de 1934. O leiteiro lhe dá um dia para quitar a dívida, ou o filho ficará sem leite. A ação do livro se passa em 24 opressivas e obsessivas horas. O autor de “Os ratos” é o escritor gaúcho Dyonelio Machado (1895-1985), de quem, até aquele ano do século passado, eu nunca ouvira falar.

E, no passar dos anos, continuei ouvindo falar pouco de Dyonelio. Uma coisinha aqui, outra ali, bem pouco, pois acho que ele merecia lugar melhor na literatura, o que seria justo lhe garantir se ele houvesse escrito somente esse romance, ganhador do prêmio Machado de Assis de 1934. Mas ele fez mais, escreveu “O louco do Cati” e o livro de contos “A história de um pobre homem”, por exemplo.

II

Março de 2011. Passeando por uma dessas modernas livrarias de shopping, dou de cara com uma nova edição de “Os ratos” (Planeta). Uma edição bem cuidada – de 2004, mas que só vim a conhecer agora -, com um estudo do crítico literário Davi Arrigucci Jr.

Ótimo, penso, mais gente vai conhecer a obra de Dyonelio. De preço original de R$ 34,90, o livro está sendo vendido por R$ 14,90. Uma alegria e uma decepção. Alegria por ver um livro bem cuidado a preço razoável; a decepção: se o desconto é tão alto, é porque está vendendo pouco.

III

Psiquiatra e jornalista, certamente Dyonelio usou dos conhecimentos obtidos nas duas profissões para escrever “Os ratos”. Sem cair no psicologismo barato, o autor nos oferece um estudo aprofundado dos dramas existenciais do modesto e humilhado Naziazeno (nome que, por sinal, assemelha-se a um zumbido, que parece nos acompanhar durante a leitura do livro).

Mas o texto de Dyonelio não é maçante, como uma tese acadêmica, cada um dos curtos 28 capítulos chama o seguinte, num suspense que por vezes corta a respiração. Fica evidente a influência do jornalismo: a descrição precisa; as frases rápidas; o “lead” no início de cada capítulo; o “gancho” para o seguinte.

O seu pleno domínio da técnica do diálogo fica demonstrado no vigoroso capítulo 9, um dos mais curtos, quando Naziazeno defronta-se com um homem que lhe pode arranjar os almejados cinqüenta e três mil réis, uma conversa tensa, que lembra um desafio, no qual Naziazeno é massacrado.

IV

O livro termina com um final “feliz”. Naziazeno consegue o dinheiro para pagar a dívida, e o deixa ao lado da panela na qual o leiteiro deposita o leite a cada manhã; fica acordado a noite inteira, num estado de semivigília, temendo que ratos (imaginários) roam o dinheiro conseguido ao preço de suor e dor.

Mas o final também é infeliz, pois essas 24 horas foram apenas uma fração em uma existência de apertos e aperreios, que continuará vida afora. Mas hoje, depois do som tranqüilizador do leite sendo despejado na vasilha: “O jorro é forte e cantante […], ele dorme”.