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Eu poderia ter topado com esses caras no fim dos 70 do século passado na rua das Palmeiras onde morei ou no bar Redondo, onde atravessei algumas madrugadas ou nas ruas do Centro, que eu palmilhava somente pelo prazer de andar sem ser (re)conhecido, como aconteceria em uma cidade pequena.

São Paulo

É isto: na São Paulo da época, eu era um cara vindo do interior, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes; assim, dedicado a um duro ofício: trabalhar de dia, estudar à noite, e combater a ditadura em assembleias estudantis e passeatas, com curtas viagens até o ABC para ver de perto os operários em movimento – e, trêmulo, pichar algum muro. Portanto, confesso que só fui ouvir falar em alguns deles muito tempo depois.

[Mesmo porque, em termos de poesia eu parei em Carlos Drummond de Andrade, o itabirano que procurava o sentimento do mundo, e em João Cabral de Melo Neto, o poeta da faca e da pedra.]

Mimeógrafo

De poesia – naqueles movimentados setenta -, por simpatia militante, eu comprava alguns livretos da “geração mimeógrafo”, uns caras andavam de bar em bar oferecendo a sua produção poética, impressa naquela maravilha tecnológica, que permitia a reprodutibilidade a baixo custo – e muita mão manchada de tinta -, o tal mimeógrafo [meninos, corram para o Google e para o Youtube para descobrirem o que é isso].

Quem?

Bom, estou dizendo isso a respeito de Roberto Piva, Claudio Willer, Antonio Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli, perfilados em Os dentes da memória, livro de Camila Hungria e Renata D´Elia, no qual elas compõem “uma coleção de relatos que reconstituem a trajetória da última geração poética paulistana, formada na década de 1960”.

O livro foi escrito em forma de diálogo, montado a partir de quarenta entrevistas que as autoras fizeram ao longo de três anos com os poetas, além de consultas a outras fontes. Eles contam algumas de suas estripulias e como se viravam naquela São Paulo “careta”; que, para mim, era um mundo novo, admirável.

Grupo anárquico

A leitura dá uma boa ideia do espírito da época e revela de que material se forma um poeta que faz de sua vida uma experimentação para a sua obra: esses caras que gostam de andar pelo lado esquerdo da rua.

A parte final do livro traz uma amostra dos poemas do “grupo anárquico”, que ficou “sufocado entre a conservadora Geração de 45 e a turma da poesia concreta, e só teve maior reconhecimento após o relançamento de Paranóia“, livro de Roberto Piva.

Livros

Os livros de onde foram colhidas as poesias reproduzidas em Dentes: Paranóia (1963), de Roberto Piva; Jardinas da Provocação (1981), de Cláudio Willer, Antes que eu me esqueça (1977), de Roberto Bicelli e Tarde revelada (1985), de Antonio Fernando de Franceschi.

Piva

Roberto Piva, o mais destacado entre os quatro, morreu em 2010, antes do lançamento do livro, cujo título foi retirado de um de seus poemas: “Rangem os dentes da memória/ segredos públicos pulverizam-se em algum ponto da América/ peixes entravados se sentam contra a noite.”

Twitter

É possível identificar-se intelectualmente com uma pessoa a partir de 140 caracteres: creio que já deve ter acontecido com quase todos que andam na linha do pássaro azul. Foi assim que conheci Renata D´Elia (@deliaboard) que me enviou o livro, do qual ela é coautora.

Coisa parecida já havia acontecido com Fred Navarro (@frednavarro), que me mandou o seu Dicionário do Nordeste, o qual estou sempre a consultar.

Os dentes da memória – Piva, Willer, Frachsch, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia
Camila Hungria e Renata D´Elia
Azougue Editorial
265 págs. R$ 38,90.

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