Coluna “Menu Político”, do caderno People, edição de 23/2/2014 do O POVO.

O espírito da manada
Plínio Bortolotti

Devido aos recentes acontecimentos multitudinários, e de grupos “justiceiros” e linchadores atuando pelo Brasil – e sendo elogiados em rede nacional de televisão -, julguei educativo revisitar a obra Psicologia das multidões (1895) e mais alguns textos sobre o assunto. No livro, o psicólogo social francês Gustave Le Bon faz observações bastante perspicazes sobre a “alma da multidão”.

Afirma Le Bon que o “mais impressionante” em uma multidão é que, independentemente das semelhanças ou diferenças entre os indivíduos que a compõe, o simples agrupamento lhes dá uma “alma coletiva”, fazendo-os agir de modo diferente do que fariam isoladamente.

“A multidão psicológica é um ser provisório, composto de elementos heterogêneos que, por momentos, se uniram, tal como as células que se unem num corpo novo formam um ser que manifesta caracteres bem diferentes daqueles que cada uma das células possui”. Somente pelo fato de pertencer ao grupo diz o psicólogo, “o homem desce vários graus na escala da civilização. Isolado seria talvez um indivíduo culto; em multidão é um ser instintivo, por consequência, um bárbaro”. Para ele, a “multidão é sempre dominada pelo inconsciente” e submetida ao poder hipnótico de um líder.

Quem também se ocupou do assunto foi Sigmund Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921). Ele manifesta concordâncias com o francês, mas vê um problema fundamental na tese dele: “Se os indivíduos do grupo se combinam numa unidade, deve haver certamente algo para uni-los”. Questão que, segundo o criador da psicanálise, Le Bon não responde.

Freud propõe então que “os membros da massa se apropriam do líder por meio de mecanismos de identificação com os ideais (paternos) que ele representa.
Ao se identificarem com o ideal, os membros das formações de massa se sentem dispensados do julgamento de seu próprio supereu – daí a disponibilidade das massas para a violência, para atos de caráter delinquente que nenhum de seus membros, isoladamente, teria coragem de praticar”, conforme interpretação de Marial Rita Khel, em artigo para a Folha de S. Paulo (1º/3/2009). (Em explicação ligeira, supereu ou superego é uma instância psíquica que contém os impulsos.)

Porém, quem contesta Le Bon com mais verve é o jornalista americano H.L. Mencken, no texto “A turba” (1918), no Livro dos insultos. Depois de recordar a tese do francês de que o indivíduo em multidão tende a exibir as mesmas reações mentais e emocionais de pessoas que lhes são inferiores, Mencken contradita: “O ignorante se descontrola na multidão, não porque tenha sido inoculado por ela com o vírus da violência, mas porque a sua própria violência tem ali a única chance de exprimir-se em segurança. Em outras palavras, o ignorante é perverso, porém covarde. Ele evita qualquer tentativa de linchamento a capella [sozinho], não porque precise de estímulo para linchar alguém, mas porque precisa da proteção de uma multidão para fazê- sentir-se corajoso o suficiente para tentar”. (…) O poder suíno da multidão já existe permanentemente na maioria de seus membros – digamos uns noventa por cento”. E arremata: “Decência, autocontrole, senso de justiça, coragem – essas virtudes pertencem a uma minoria de homens”.

Como se vê, mesmo com a divergência entre os autores, nenhuma análise é meritória àquele que se deixa contaminar pelo espírito de manada.

NOTAS

Multidão
No ano de 1985, uma tragédia abalou Fortaleza. Um homem subiu na torre de uma emissora de televisão, na av. Desembargador Moreira, e ameaçava suicidar-se. Um grupo de pessoas aglomerou-se na rua para acompanhar o drama que se desenrolava, inclusive alunos de um colégio nas proximidades. Não demorou muito para iniciar-se um coro: “Pula, pula, pula”. O rapaz pulou.

Fora da ordem
Joaquim Barbosa: somente o fato de o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em pleno exercício de sua função de mais alto representante do poder Judiciário, ter de negar que é candidato a presidente da República, já demonstra que alguma coisa está fora da ordem no pais.

Mister Rodoviária
A professora Rosa Marina Brito Meyer foi afastada da chefia da Coordenação Central de Cooperação Internacional, da PUC-Rio, porém continuará dando aula na universidade. A destituição do cargo ocorreu depois dela ter publicado uma foto em seu Facebook ironizando a aparência de um passageiro, que estava no saguão do aeroporto Santos Dumont (Rio), chamando-o de “Mister Rodoviária”. O caso obteve bastante repercussão, e foi comentando nesta coluna na semana passada.

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