Reprodução do artigo publicado na edição de 3/8/2014, na coluna “Menu Político”, caderno “People”, do O POVO.

Por que defendo os black blocs
Plínio Bortolotti

Ilustração: Carlus

Ilustração: Carlus

Na indefectível Veja, Ricardo Setti ironiza o desembargador Siro Darlan, do Rio, por conceder habeas corpus aos militantes ou supostos militantes da Frente Independente Popular (FIP). Espanta-se retoricamente o colunista “de grife” com a medida do juiz, perguntando se o magistrado não sabe que “eles (os ativistas) DETESTAM o Estado de Direito que ora os beneficia, que eles DESPREZAM a democracia que agora os deixa livres, que eles pretendem DERRUBAR o arcabouço jurídico em que se basearam seus advogados para colocá-los em liberdade”. (Maiúsculas no original.)

Mas, o que uma coisa tem a ver com a outra?

Absolutamente nada. E quem o afirma melhor do que eu é o jurista Sobral Pinto, católico fervoroso, anticomunista exemplar, porém, corajoso o suficiente para defender os líderes da “Intentona Comunista” (1935), trabalho que até advogados esquerdistas temiam tomar para si. No livro Por que defendo os comunistas (1979), Sobral Pinto revela que o fazia por amor à Justiça e pelo princípio cristão, resumido por Santo Agostinho: “Odiar o pecado e amar o pecador”.

Um desses comunistas era o alemão Harry Berger, dirigente da Terceira internacional, barbaramente torturado, encarcerado em condições desumanas “no socavão de uma das escadas da Polícia Federal”, um cubículo abafado, vestindo uma roupa que não mudava havia meses.

Sobral Pinto, dirigente de uma importante organização cristã da época, a Ação Católica, luta com unhas e dentes para conseguir condições dignas de prisão para um inimigo da Igreja e da democracia. O requerimento (2/3/1937) que escreve ao juiz do Tribunal de Segurança Nacional é uma verdadeira lição de moral e de justiça, ainda atual, por isso vale transcrever trecho mais longo:

“Não se argumente, como se já fez ao Suplicante, que bem pior seria o tratamento que Harry Berger faria dispensar aos burgueses brasileiros se vitoriosa tivesse sido a revolução de novembro de 1935, da qual era um dos chefes confessos. Tal argumento é (…) inequivocadamente improcedente.”

“Pretender justificar, assim, com o exemplo dos governos comunistas, a desumanidade implacável com que está sendo tratado Harry Berger, é – além de contradizer todas as afirmações teóricas da nossa sistemática jurídica – dar razão aos doutrinadores marxistas, quando asseveram que o direito burguês é mera invenção artificial do pensamento explorador das classes possuidoras (…). Recorrendo, na repressão legal aos inimigos do regime, à prática da violência, que o seu direito teoricamente condena, os governantes burgueses nada mais fazem do que confirmar a argumentação da dourina comunista, quando diz que esse direito é simples ficção do pensamento interesseiro das classes dirigentes, sem a menor base na realidade social do atual momento histórico.”

Os leitores generosos o suficiente para ler as linhas tortas que escrevo sabem que sou crítico de primeira hora dos black blocs; que defendo um freio às suas arruaças e a punição de eventuais crimes. Porém, é nos momentos de crise que a convicção e o caráter são postos à prova. Louvar prisões arbitrárias porque atingem quem pensa ou age de forma divergente é aceitar a própria derrocada moral; é negar a democracia; é declarar-se um simples demagogo.

NOTAS

Presos políticos
O jurista Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991) foi um católico devotado e anticomunista fervoroso. Seu apego aos direitos humanos levou-o à defesa de presos políticos na ditadura do Estado Novo (1937-1945) e na ditadura militar (1964-1985).

Intentona Comunista
Também conhecida como Levante Vermelho ou Revolta Comunista. Foi uma tentativa de golpes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), desfechado em 1935, e rapidamente controlado pelas forças legalistas. O seu principal líder foi Luiz Carlos Prestes, também defendido por Sobral Pinto.

Animais
Na defesa que Sobral Pinto fez Harry Berger ficou famosa a sua tese em que defendia ao seu representado, pelo menos, tratamento equivalente ao que era dispensado aos animais no Brasil, cuja lei de proteção havia sido assinada havia pouco tempo pelo presidente Getúlio Vargas.

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