Reprodução do artigo publicado na coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 8/2/2015 do O POVO.

CarlusA política flertando com o abismo
Plínio Bortolotti

Bling Ring é um filme de 2013 que só fui ver agora, em um desses canais a cabo. A história (baseada em fatos) gira em torno de um bando de adolescentes da alta classe média californiana, cujo vazio existencial é preenchido pela tentativa de emular a vida de celebridades, tão destituída de sentido quanto a deles. A forma como eles escolhem para ter o mesmo que os famosos é o que organiza a trama: os jovens criminosos passam a roubar as casas desses miliardários. E o que buscam os infratores juvenis? Roupas, sapatos, joias, perfumes, artigos de maquiagem, outros produtos de grife e dinheiro vivo, que as celebridades acumulam aos montões.

Uma das casas “visitadas” pela quadrilha é a da socialite Paris Hilton. É chocante a vista do closet onde ela acumula seus sapatos: há centenas deles, todos de marcas famosas. Enquanto aqueles jovens queriam ter tudo aquilo que Paris possui (talvez algumas pessoas vendo o filme desejem o mesmo), a qualquer pessoa normal, a primeira centelha de pensamento deveria ser: “Como esse mundo é injusto”. Pelo vislumbre – as filmagens usaram o cenário real – creio que Hilton, por baixo, poderia usar uns dois pares de sapatos diferentes por dia, por um ano, sem nunca repeti-los.

Luxo e miséria
Segundo estudos recentes (Oxfam e do banco Credit Suisse Research), o 1% mais rico da população mundial abarca 50% da riqueza global, ficando 99% da população com o que sobra. (Entre esses privilegiados estão os personagens do filme citado acima – ladrões e vítimas.) Outro estudo da Oxfam, ONG que atua contra a pobreza, mostra que 85 bilionários no mundo detém riqueza equivalente aos 3,5 bilhões mais pobres da população global. Você leu certo: 3,5 BILHÕES de viventes precisam se somar para ter patrimônio igual a de 85 pessoas. Outra conta mostra que no mundo há mais de um bilhão de pessoas vivendo com menos de um dólar por dia. Para a Oxfam, a crise de 2008, que lançou milhões de pessoas ao desespero, contribuiu para aumentar o patrimônio dos mais ricos.

“Meritocracia”
Em seu livro O capital no século XXI, Thomas Piketty desmonta a ideia da “meritocracia”, que costuma justificar a disparidade de renda. Segundo palavras de Paul Krugman, a “grande ideia” do livro é que “não é só a de que retornamos ao século 19 em termos de desigualdade de renda, como a de que estamos no caminho de volta ao ‘capitalismo patrimonial’, no qual os grandes píncaros da economia são ocupados não por indivíduos talentosos mas por dinastias familiares”. (Em suma, não há mérito em estar em um lugar que se assume por herança).

Esquerda
Coisas assim, entre outras, ajudam a explicar a vitória do Syriza, partido da esquerda radical, na Grécia. A mesma situação está impulsionando o Podemos na Espanha. Nos dois países, o arrocho para pagar as respectivas dívidas aos rentistas promoveu o desemprego de milhões de trabalhadores, com corte de verbas públicas, da saúde, educação e direitos trabalhistas.

Pelo jeito, as pessoas estão cansando de levar cipó de aroeira no lombo – e estão dando o troco. Mas, ainda bem, estão se manifestando pela via da política, por meio de partidos atuando na ágora democrática. Porém, situações assim tendem a ser explosivas. E já passou da hora de as estruturas partidárias tradicionais perceberem que vivemos em um cenário insustentável. (O que revela a operação Lava Jato e recente eleição para presidência da Câmara e do Senado mostram que, no Brasil, a política continua flertando com o abismo.)

NOTAS

Syriza
Syriza é acrônimo de Synaspismós Rizospastikís Aristerás ou Partido da Esquerda Radical. Sua criação é resultado direto da violenta crise que atinge a Grécia desde 2009.

Podemos
O partido Podemos surgiu com as manifestações de rua na Espanha, em 2011. Na sua primeira disputa, ano passado, elegeu cinco deputados, com 1,2 milhão de votos. A expectativa é que crescerá ainda mais nas eleições gerais do fim do ano.

Crédito
Paulo Krugman, Prêmio Nobel de Economia (2008), considera “verdadeiramente soberbo” O capital no século XXI, livro de Thomas Piketty, afirmando que a obra “revoluciona as ideias sobre desigualdade”. O trecho citado no texto está neste artigo.

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