Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 29/8/2015 do O POVO.

CarlusAssisti a um filme delicado e descobri um serviço eficiente
Plínio Bortolotti

Sem ainda ter aderido aos serviços de filmes via internet, quando quero ver alguma película em casa, transito pelos canais a cabo, na esperança de ser surpreendido pela programação. É cada vez mais raro, porém acontece.

Dia desses fui capturado por um filme indiano, Lunchbox, cujo título pode ser traduzido como “marmita”. O resumo do filme, que se passa em Bombaim (Índia), é o seguinte: uma jovem dona de casa, sentindo o seu casamento fraquejar, faz uma tentativa de reanimá-lo por meio da comida. Contrata um serviço de entrega de marmitas e manda a primeira refeição, preparada por ela, para o marido, com um bilhete.

O marmiteiro erra o endereço e entrega o almoço no escritório onde trabalha um funcionário público de meia idade, viúvo, próximo da aposentadoria, e sem perspectivas na vida. Ele fica com o almoço e responde ao bilhete. A mulher gosta e continua a mandar a comida, acompanhada de novos bilhetes, iniciando-se uma delicada conversa epistolar entre eles.

Uma das cenas aborda a falha na entrega de marmitas e o entregador, para defender a excelência do serviço, diz que a eficiência do sistema de distribuição havia sido “estudada pela Harvard”, uma das melhores universidades do mundo.

Curioso, fui ao velho Google, informando-lhe algumas palavras-chave – como “marmita bombaim” – e fiquei sabendo que uma cooperativa congrega cinco mil dabbawalas (marmiteiros), que entregam diariamente, em milhares de escritórios da cidade, cerca de 200 mil refeições feitas em casa.

Com um sistema simples e artesanal, os dabbawalas andam a pé, de bicicleta, empurrando carrinhos, e utilizando-se do serviço de transporte público, principalmente os trens, para deixar a comida, no máximo até as 12h30min, na mesa de cada cliente. Até as 14 horas, as marmitas vazias são apanhadas e inicia-se a logística reversa.

O serviço iniciou-se no fim do século XIX e, sem instrução formal, os dabbawalas foram estruturando o negócio da forma recomendada pelos modernos manuais de administração. Existem apenas três níveis hierárquicos (entregadores; coordenadores, que cuidam da distribuição nos trens; e pessoal de apoio administrativo): os problemas que surgem são resolvidos com independência, sem consultas aos “chefes”. O salário é igual para todos.

Entregar a marmita no horário é tomada como uma missão pelos dabbawalas. E nunca aconteceu nenhuma greve no serviço. A revista inglesa The Economist avaliou que a possibilidade de erro é de um a cada 16 milhões de entrega; a americana Forbes classificou a engenharia de distribuição como um serviço quase perfeito. Em 2010, a Harvard Business School estudou o caso, exposto no trabalho “The Dabbawala System: On-Time Delivery, Every Time” (em tradução livre – “O sistema dabbawala: entrega no prazo, sempre”). O método passou a ser estudado em escolas de administração de todo o mundo e também por grandes empresas.

A lição é a seguinte: em um mundo altamente tecnológico, ainda é possível sair-se bem de tarefas complexas utilizando-se da artesania.

Quanto ao filme, a grande sacada é construir o enredo, ou o “plot”, como gostam de dizer os críticos de cinema, a partir de uma quase impossiblidade: o erro na entrega da marmita. Como repete um dos personagens: “Às vezes o trem errado leva à estação certa”.

NOTAS

Lunchbox
O filme é dirigido por Ritesh Batra e tem como atores Irrfan Khan, Nimrat Kaur e Nawazuddin Siddiqui. Todos muito bons atores, principalmente Irrfan Khan, que transmite a emoção do personagem com gestos e olhares contidos.

Entrega
No processo de entrega, as marmitas podem trocar de mão até quatros vezes, viajando até 70 quilômetros. O serviço começou em 1890; desde então, o método permanece praticamente inalterado.

Cooperativa
Com o sucesso do empreendimento, os dabbawalas passaram também a ser palestrantes, falando para empresas como Coca-Cola, Siemens e Daimler-Benz, e também para estudantes das melhores universidades americanas.

Crédito
Além de informações avulsas, consultei a revista Exame para escrever o texto.

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