Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 8/11/2015, do O POVO.

CarlusAssustadoramente normais
Plínio Bortolotti

Já foi mais, porém ainda é comum o noticiário “policial” classificar de “monstro” aquele que comete crimes terríveis. Quem nunca leu que “pai monstro” ou “mãe monstro” fez tal ou qual coisa? Os homens que participaram de um estupro coletivo no Piauí, em maio, também foram classificados de “monstros”. É um mecanismo de defesa usado pelas pessoas para dizerem a si mesmas que seriam incapazes de praticar ação parecida. Ele é um monstro, eu sou humano, logo estou livre de cometer o mesmo desatino.

O problema é que a coisa não é bem assim. Recentemente, em experimento coordenado por um psicólogo, uma atriz fingiu-se de bêbada em uma rua no centro de Madri (Espanha). Não demorou para que começasse a sofrer assédio por grupos de homens, em plena luz do dia, com um monte de gente passando na calçada. Um dos homens, levou-a para uma rua menos movimentada e tentou beijá-la. Foi necessária a intervenção dos produtores para evitar que a violência continuasse. Alguém duvida que – caso houvesse mais dois ou três “homens comuns”, “cidadãos de bem”, “pais de família” -, eles teriam tentado subjugá-la? Quem comete linchamentos, se não as pessoas “normais”?

A mesma classificação de “monstros” ganham os grandes criminosos da humanidade, como Hitler ou Stálin, por exemplo. Ou grupos, como o chamado Estado Islâmico (EI).

O portal da BBC publicou entrevista com o padre católico sírio, Jack Murad, da cidade de al-Qaryatain, dominada pelo EI. Ele foi sequestrado, passou três meses em cativeiro, foi ameaçada constantemente de morte – por ser “infiel” à vista do islã – porém não foi torturado. O religioso disse que os captores tinham muita curiosidade sobre o cristianismo, mas ele evitava responder-lhes perguntas.

A tendência que o ocidente têm é pensar que os extremistas do Estado Islâmico são “monstros”, “ignorantes”, “selvagens”, mas vejam o que diz o padre, que falou com vários clérigos e foi levado à presença do líder do Estado Islâmico:

“Eles sabem tudo, cada detalhe. Nós tendemos a pensar que eles são beduínos incultos. Mas, na verdade, é exatamente o contrário. Eles são inteligentes, educados, têm graduação universitária e são meticulosos no planejamento”.

E esse é, precisamente, o maior perigo. Observem o que escreveu a filósofa Hanna Arendt a respeito de Adolf Eichmann, criminoso nazista, julgado em Israel (1961):

“(…) É claro que teria sido muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro (…). O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos nem sádicos, mas eram e ainda são assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de seu julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas (…)”

Esse sujeito “assustadoramente normal” foi o responsável pela logística da “solução final”, o transporte de milhões judeus para os campos de concentração, onde seriam exterminados.

Como se vê, são “assustadoramente normais” os nazistas como também os extremistas do EI. Como também podem ser “assustadoramente normais” aqueles que praticam os mais terríveis crimes da crônica policial. Ainda que se insista em chamá-los de “monstros”, eles são humanos.

NOTAS

Fuga
Depois de três meses em cativeiro, o padre Jack Murad foi devolvido à pequena comunidade cristã de al-Qaryatain, na qual poderia viver sob as condições estabelecidas pelos líderes do Estado Islâmico. Temendo pela segurança, ele fugiu da cidade.

Hanna Arendt
O trecho citado acima, de autoria de Hanna Arendt, está no livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. Arendt acompanhou o julgamento do criminoso nazista em Israel. Em lugar do “monstro” que todos queriam ver, ela descobriu que Eichmann era perturbadoramente normal, um burocrata obediente do Terceiro Reich.

Crédito
Portal da BBC Brasil: O padre católico que escapou do “Estado Islâmico”; Atriz se finge de embriagada e sofre assédio ostensivo em plena luz do dia.

Tagged in: