Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 19/6/2016 do O POVO

Heróis e demônios são criados pelo mesmo mecanismo

Existem pessoas que admiro, artistas, escritores, mas nunca tive “ídolos” ou heróis, desses de se botar pôster na parede. Talvez seja uma lembrança herdada das conversas de minha mãe com suas vizinhas – no tempo em que ela tinha a metade da minha idade de hoje e eu a considerava “velha”.

Na época, Roberto Carlos era o “rei da juventude” e todas as mulheres apaixonavam-se por ele: na fofoca das amigas, suas músicas e sua figura eram louvadas – e havia a comparação com maridos distantes e pouco românticos. Minha mãe costumava cortar o assunto com: “Dona Fulana, é tudo gente igual a gente”.

A relembrança vem a propósito da prisão de Newton Ishii, o “Japonês da Federal” que se transformou em símbolo anticorrupção – herói dos paneleiros e outros inimigos do governo Dilma Rousseff e do PT. Foi bajulado nas manifestações, máscaras com o seu rosto tornaram-se populares e até deputados fizeram “selfies” com ele, incluindo Jair Bolsonaro, este candidato a herói da extrema-direita e dos desavisados.

Agora revela-se o quê? Ishii – o condutor de presos – está, ele mesmo, preso, condenado por facilitação de contrabando. Com que cara ficarão os que o incensaram?

Ficando apenas no Brasil, identificam-se várias dessas figuras carismáticas, que parecem boias de salvação, quando tudo parece afundar. Para ficar apenas em tempos bem mais recentes. De Lula, herói dos pobres; a Sérgio Moro, o justiceiro, que vai varrer a corrupção do País.

Por óbvio, não se nega qualidades a um ou a outro. Mas nem um poderá “consertar” o Brasil sozinho; e nem o outro vai trazer ao País o império da lei. Eles são gente como a gente: com seus medos e destemores; capazes de fazer o bem e o mal, vaidosos, complexos, contraditórios, humanos, afinal. Foi alguma circunstância fortuita da vida que os levou aonde estão, como poderia ter levado outra pessoa.

Não existe salvador da pátria; bala de prata, só em filmes. O trabalho de construção, de um país, ou de qualquer obra complexa, não é tarefa solitária, dependente de um único indivíduo, por mais poderoso que ele queira se fazer parecer. É uma responsabilidade que exige trabalho solidário e persistente, que principia e termina em cada cidadão.

Do mesmo modo que se criam os heróis, se engendram os bodes expiatórios. É fácil atribuir a corrupção aos políticos, porém fazemos o mesmo, amiúde. Matéria da BBC Brasil listou dez atitudes corruptas que brasileiros praticam no dia a dia.

Alguns dizem que esse tipo de deslize é irrelevante, quando comparado à grande corrupção. Certo, mas os adeptos da “pequena corrupção” estarão propensos a aumentar o jogo se a oportunidade se apresentar. Quem nunca ouviu – quando se fala em corrupção ou favorecimentos, alguém emendar: “Se eu estivesse lá, faria o mesmo”?

Comentando o assunto, no jornal digital Nexo, a socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo (USP), disse o seguinte: “A responsabilidade vem sendo depositada no outro, como se não coubesse ao cidadão comum agir contra a corrupção. Nessa concepção, as corrupções do cotidiano não são computadas como corrupção – como anular pontos na carteira de motorista, por exemplo. É como se a corrupção fosse circunscrita à esfera pública e coubesse apenas às figuras públicas a resolução desses problemas. A criação de heróis tem a ver com isso, tem a ver com a ausência de autorresponsabilização dos cidadãos”.

NOTAS

Cuidado
“Através dos mesmos mecanismos pelos quais os heróis são encarnados, demônios são criados”. Walter Lippman, no livro “Opinião pública”.

Dez corrupções
Lista das 10 corrupções mais comuns no cotidiano do brasileiro, organizada pela BBC Brasil:1) Não dar nota fiscal; 2) Não declarar Imposto de Renda; 3) Tentar subornar o guarda para evitar multas; 4) Falsificar carteira de estudante; 5) Aceitar troco errado; 6) Dar troco errado; 7) Roubar TV a cabo; 8) Furar fila; 9) Comprar produtos falsificados; 10) Bater ponto pelo colega. Acrescentaria mais uma: não avisar o garçom quando ele se esquece de anotar algum item na conta ou erra em favor do cliente.

Crédito
Lista aponta 10 práticas de corrupção, BBC Brasil. O que a prisão do Japonês da Federal diz sobre o Brasil, jornal Nexo.

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