Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 26/2/2017 do O POVO.

O turbante e os excessos do “politicamente correto”

Entre os excessos do “politicamente correto”, ignorava os que acometiam a chamada “apropriação cultural”. Já vi gente pedindo censura de livros de Monteiro Lobato; avocando o “lugar da fala” para impedir quem não pertence a determinado grupo a opinar sobre certos assuntos; alguns querendo tirar de circulação músicas “preconceituosas” ou a banir determinadas palavras do dicionário. Mas, confesso, desconhecia até mesmo o conceito de apropriação cultural.

Observem que me refiro aos “excessos” do politicamente correto. Por óbvio, reconheço a existência de palavras e comportamentos agressivos e preconceituosos, que têm de ser combatidos. A mais, defender o direito de circulação de palavras, músicas, livros, filmes e outras obras de arte considerados desrespeitosos por quaisquer grupos não representa concordância com o seu conteúdo.

Pois bem, mas fiquei sabendo o significado de “apropriação cultural” depois que foi noticiada a postagem no Facebook de Thuane Cordeiro, uma jovem curitibana, repreendida por usar um turbante. Nas palavras dela, reproduzidas literalmente:

“Vou contar o que houve ontem, para entenderem o porquê de eu estar brava com esse lance de apropriação cultural. Eu estava na estação com o turbante toda linda, me sentindo diva. E eu comecei a reparar que tinha bastante mulheres negras, lindas aliás, que estavam me olhando torto, tipo ‘olha lá a branquinha se apropriando da nossa cultura’. Enfim, veio uma falar comigo e dizer que eu não deveria usar turbante, porque eu era branca. Tirei o turbante e falei ‘tá vendo essa careca, isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero! Adeus’. Peguei e saí e ela ficou com cara de tacho”. (E, só para constar: me parece que o uso do turbante é bastante disseminado em dezenas de culturas mundo afora.)

Aprendi que a “apropriação cultural” acontece quando alguém da cultura hegemônica adota aspectos de um grupo diferente, podendo implicar visão negativa do povo do qual foi obtido o empréstimo. Um branco usando dreadlock, por exemplo, pode ser considerado apropriação cultural, pois é um costume próprio da cultura africana ou indiana.

Passei a ler textos explicando por que a “apropriação cultural” seria errada e mesmo uma violência contra grupos minoritários ou que sofreram injustiças históricas. É sempre bom conhecer argumentos contrários, ajuda a afiar a mente e a ajustar a opinião: nem tudo o que eu penso está certo, nem tudo o que dizem está errado. (A maioria dos artigos li no portal do Geledés – Instituto da Mulher Negra.)

A adoção de elementos de uma cultura por outra sempre ocorreu no decorrer da história humana. Um dos artigos que li, a propósito, afirma haver uma “linha tênue” entre apropriação e intercâmbio cultural. Pois é, quem seria o juiz para definir o que é uma coisa ou outra? Teríamos de parar de comer feijoada para não ofender a cultura afrodescendente; cartomantes seriam proibidas de trabalhar para não se “apropriar” da cultura cigana ou qualquer outra que tenha iniciado esse método de “adivinhação”?

Um dos argumentos que me pareceram fortes é a apropriação que a indústria do entretenimento faz da cultura negra – casos do samba ou do rap, por exemplo -, ritmos que deixaram de ser marginalizados e “perigosos” quando começaram a dar lucro. Está bastante documentado que o rock nasceu da música negra, mas as gravadoras escolheram um branco, Elvis Presley, para levá-lo às paradas de sucesso.

Porém, uma coisa é confrontar o “sistema”; outra, diferente e inaceitável, é implicar com uma jovem que usa um turbante, um moleque que põe uma pena na cabeça, uma mulher que usa um brinco “étnico” ou um rapaz que imprime no braço uma tatuagem “tribal”. Assim, à censura das palavras, une-se a interdição das escolhas e do corpo do outro. É um convite à intolerância.

NOTAS

Palavras
Se a coisa for levada a ferro e fogo, quantas palavras “apropriadas” de várias culturas, inclusive da africana, teríamos de riscar do dicionário?

Músicas
As marchinhas de Carnaval também entraram no samba do politicamente correto. Algumas bandas anunciaram que deixarão de tocar, por exemplo, “Maria Sapatão”, “Cabeleira do Zezé”. (Mas até aí tudo bem, cada um toca e canta o que quer. Espera-se que o troço não evolua para pedido de censura.)

Mulata
Pelo menos uma das bandas cariocas está discutindo se toca “Tropicália”, de Caetano Veloso, já que a palavra “mulata” entrou no índex proibitório. Chico Buarque também usou o termo “mulata” em pelo menos uma música, “Notícia de jornal”.

Créditos
Geledés: vários artigos sobre apropriação cultural ; revista Fórum: Polêmica divide opiniões.

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