Incêndio destrói, no começo da noite de domingo (2), o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista (Foto: Agência Brasil)

A morte do Museu Nacional não é uma surpresa. É mais uma tragédia entre tantas.

Anunciada com pompa e circunstância com antecedência de pelo menos dez anos, constitui uma dessas modalidades nas quais o Brasil tem excelência: ignorar os sinais da derrocada histórica e política e seguir em trote avançado rumo ao abismo.

Foi assim em Mariana (MG), três anos atrás, com o rompimento da barragem da mineradora Samarco.

Antes do despejo de 62 milhões de metros cúbicos de minério de ferro rio adentro até chegar ao mar, naquilo que se tornaria a maior catástrofe ambiental do País, houve sucessivos alertas. Todos ignorados.

Basta uma consulta rápida na internet para localizar artigos e reportagens em cujo centro está o risco iminente de incêndio no Museu do Rio, o maior e mais importante acervo antropológico, botânico e historiográfico brasileiro e um dos mais ricos do mundo, guarda de 20 milhões de itens.

Quase 15 anos atrás, ao responder a pergunta sobre a hipótese de um sinistro no museu, o então diretor da instituição, Sérgio Alex Azevedo, admite que a situação do equipamento é delicada – a estrutura elétrica está seriamente comprometida – e afirma que essa crise já durava pelo menos 40 anos.

Ora, uma crise que se arrasta por quase meio século deixa de ser uma crise para se tornar uma forma de se relacionar, de viver, de encarar a coisa pública.

Já àquela altura, a crise, que atingira seu momento agudo havia alguns anos e esperava apenas um estopim, tinha se convertido no próprio modelo de gestão do museu e no modo pelo qual o estado brasileiro enxergava esses espaços.

Não surpreende, então, que nossa reserva de memória haja se consumido entre labaredas que se alimentavam tanto das páginas de História nacional recolhidas no curso de 200 anos de existência quanto na preservação do fóssil humano mais antigo das Américas.

Batizado de “Luzia”, o crânio feminino foi encontrado por uma missão arqueológica na região da Lapa Vermelha, em Minas Gerais, na década de 1970. Morto duas vezes, agora é cinza.

Horas após a destruição do Museu Nacional, o ministro da Cultura, Sérgio Leitão, se apressou em dizer que o governo iria reconstruir o que se havia perdido. Antes dele, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, já tinha falado que o palácio imperial seria refeito.

Cristalinas na sua ignorância e daninhas no que têm de enganosas, são manifestações explícitas da nossa falência e remontam a outras tragédias – não apenas do Rio, mas do País.

Resultado de acúmulo e cultivo, dois sinônimos para a cultura, a memória não se refaz, tampouco se recupera, ainda que a custo de fortuna. Perdê-la, no entanto, é tarefa ligeira, como se provou agora.

Em poucos minutos, as chamas haviam arruinado dois séculos de preciosidades.

A respeito do incêndio e de seu efeito irreversível para a pesquisa e a ciência, a presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Kátia Bogéa, desabafou: “Luzia está morta”.

A primeira morte foi cerca de 13 mil anos atrás, quando tinha entre 20 e 24 anos. Agora, às vésperas da eleição presidencial.

Num país de esquecidos, o museu agonizava, asfixiado pela falta de verbas, enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se autoconcediam aumento salarial de 16% duas semanas atrás.

Alguém dirá que uma coisa não se liga à outra, e talvez tenha alguma razão. Mas, cá comigo, entendo que os fatos, aparentemente isolados, se conectam na mesma fogueira: a desimportância com o bem público, seja nosso patrimônio material, seja nossa riqueza.

Sintomático, portanto, que o apagamento de nossa identidade documentada se dê exatamente no meio de um processo eleitoral, momento no qual a história brasileira é distorcida, rasurada e reescrita ao gosto de quem tem por ofício o dever de zelar por ela.

No calor do debate, logo o tema será explorado. Vai virar tópico obrigatório em sabatinas e entrevistas com candidatos. Para, passada a votação e anunciado o vencedor, ser novamente preterido em favor de outras urgências.

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Henrique Araújo

Jornalista do Núcleo de Política do O POVO

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