No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estava lá. Jesus foi convidado para o casamento e os seus discípulos também. Ora, não havia mais vinho, pois o vinho do casamento havia acabado. Então a mãe de Jesus lhe disse: “Eles não têm mais vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou”. Sua mãe disse aos serventes: “Fazei tudo o que ele vos disser”.


Jo 2, 1-5

 

O ralato das Bodas de Caná é um dos episódios bíblicos que mais me tem fascinado ao longo de minhas leituras do Evangelho. Entre os vários motivos para tal fascínio, gostaria aqui de destacar dois. Primeiro, porque este episódio faz antever a perfeita sintonia expressa entre Maria e seu Filho, Jesus Cristo. Essa sintonia, de tal ordem que basta uma palavra de interecessão da Mãe para que o pedido seja prontamente atendido pelo Filho, faz de Maria a suprema interecessora de quantos a Ela recorrem em busca de socorro nas ocasiões de desalento. O papel de Maria como intercessora maior de todos os cristãos encontra neste episódio que assinala, também, o primeiro milagre operado por Cristo, o exemplo paradigmático.
Segundo, porque neste episódio é antecipado o supremo mistério cristão, qual seja, o da Transsubstanciação, em que o pão se converte no Corpo de Cristo e o vinho no seu Sangue. A memória desse mistério será instituída, também, durante a celebração de um banquete, o banquete pascal, celebrado por Cristo com seus discípulos quando da última ceia. O primeiro milagre, portanto, operado por ocasião de um banquete nupcial, antecipa, de forma lapidar, o banquete do cordeiro, também ele nupcial, posto que neste último, Cristo, o supremo esposo, se oferece inteiro à alma. As núpcias de Cristo esposo com a alma, o chamado “hierósgamos” ou “hierógamos”, o casamento sagrado, se tornará, ao longo da tradição cristã, pedra angular das reflexões de muitos místicos pelos séculos afora. Apenas para citar dois exemplos, recordamos os inspirados textos dos místicos carmelitas São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus (Teresa d’Ávila).
São João da Cruz, na primeira estrofe do poema CANÇÕES ENTRE A ALMA E O ESPOSO, indaga, como num lamento:

Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o servo fugiste,
Havendo-me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.

Na explicação para os versos, escreve o Doutor Místico da Igreja:
“Nesta primeira canção, a alma enamorada de seu Esposo, o Verbo de Deus, desejando unir-se a ele por visão clara de sua essência, expõe suas ânsias de amor. Queixa-se a ele de sua ausência, mais ainda porque, depois de havê-lo ferido e chagado com seu amor, – pelo qual saiu a alma de todas as coisas criadas e de si mesma, – ainda a faça sofrer essa ausência de seu Amado, e não queira ainda desatá-la da carne mortal para poder gozar dele na glória da eternidade”.
[São João da Cruz. Cântico Espiritual. Em: Obras Completas de São João da Cruz. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 594.]

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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