imagemUm jardim, uma mulher, vinho,/ Meu desejo e minha amargura:/ Eis o meu Céu e o meu Inferno./ Mas quem já viu o Céu e o Inferno?

Omar  Khayyam

[Khayyam, Omar. Rubaiyat. Tradução de Manuel Bandeira (de Franz Toussaint). – Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, estrofe 54, p. 53.]

 Quem abre pela primeira vez o Rubaiyat e lê os versos das três primeiras quadras não ficará indiferente ao estilo direto e sem rodeios do autor, quando escreve: Sabem todos que nunca/ Murmurei uma prece./ Sabem todos que nunca/ Escondi meus pecados. // Ignoro se realmente/ Existe uma Justiça/ E uma Misericórdia./ Nada temo no entanto. // Nada temo. Antes, nelas, / Se é que existem, confia/ Minh’alma, porque sempre/ Fui um homem sincero (1, p. 11).

O Rubaiyat é uma das composições literárias mais famosas da literatura legada ao mundo pelo Oriente. Seus versos foram escritos por Omar Khayyam, cujo nome completo era Ghiyáthuddin Abulfath Omar bin Ibráhim Al-Khayyámi, que nasceu e faleceu em Nishapur, província de Khorassan, na Pérsia (c. 1050 – c. 1123).

Omar Khayyam ocupou a função de diretor do observatório astronômico de Merv, tendo se dedicado ao estudo da matemática e da astronomia. Escreveu vários tratados, um dos quais, sobre álgebra, se tornaria um clássico, tendo sido traduzido no Ocidente. Foi também responsável pela reforma do calendário muçulmano.

Embora tenha se tornado conhecido sobretudo como matemático e astrônomo, Khayyam se destacaria também na poesia, adotando as quadras epigramáticas como estilo literário. Foi nesse estilo que escreveu o Rubaiyat, sua composição poética mais famosa. Rubáyyát é o plural de rubay, quadra em persa. Deve-se a primeira tradução em uma línguan ocidental ao austríaco Joseph von Hammer-Purgstall (1774-1856). Em 1857, foram traduzidos para o francês por Nicolas. O inglês Edward Fitzgerald (1809-1883), ao lê-la, encantou-se com os versos de Khayyam, e resolveu também traduzi-los. A partir de então, o poeta persa ganharia seguidas traduções em outros países e línguas, inclusive no Brasil, onde foi feita uma tradução por Otávio Tarquínio em 1955, publicado pela editora José Olympio.

A tradução do Rubaiyat tem sido motivo para muitas discussões ao longo dos séculos, tendo alguns de seus tradutores, em certos casos, lançado mão de recursos nem sempre aconselháveis. Assim aconteceu, por exemplo, com Edward Fitzgerald, que, embora tendo publicado um texto de grande beleza poética, alterou-lhe em demasia o sentido original.

O poeta brasileiro Manuel Bandeira também se encantou com os versos do poeta persa e, para felicidade nossa, resolveu traduzi-los para a língua portuguesa. Para tanto, tomou como referência a tradução francesa de Franz Toussaint, de 1923, por considerá-la mais fiel ao texto original, se comparada com a de Fitzgerald. Em 2001 a Ediuouro fez uma edição do texto traduzido por Bandeira. É uma belíssima edição, com capa dura e sobrecapa, além do texto  emoldurado por arabescos.

Nos versos do Rubaiyat tudo recende a hedonismo. O que importa é viver o presente, fruir o momento, mas vivê-lo bem, pois a vida é fugaz e dela nada se leva, uma vez que não se tem garantia de que exista vida no além. A propósito do hedonismo característico do poema, encontrei um blog no qual foi divulgada a fotografia de uma moça em cujo braço fizera tatuar uma estrofe do Rubaiyat. Tentando investigar a origem da fotografia, encontrei-a numa galeria de uma italiana chamada Federica Salvatore. Sob a fotografia, escreveu a moça:

Il mio credo in um tatuaggio, ou seja, ela afirma que os versos tatuados são o seu credo. Para a estrofe, tatuada em caracteres árabes, oferece a seguinte tadução: Non ricordare il giorno trascorso,/ non perderti in lacrime sul domani che viene,/ su passato e futuro non far fondamento, vivi oggi e non perdere al vento la vita. Omar Khayyam.

O Rubaiyat como filosofia de vida estamoada na própria pele

O Rubaiyat como filosofia de vida estampada na própria pele

Cotejando com a tradução de Manuel Bandeira os versos escritos na tatuagem, concluí que a estrofe que mais se aproxima é a seguinte: Não te mergulhes no passado/ Nem no porvir. Teu pensamento/ Não vá além do presente instante!/ Este é que é o segredo da paz (64, p. 59). (O site onde encontrei originalmente a fotografia é o seguinte: http://www.blingdomofgod.com).

A propósito das alterações sofridas pelas traduções do Rubaiyat, afirma Affonso Romano de Sant’Anna: Omar Khayyam é um fenômeno, criado e recriado por muitas mãos (texto da orelha da edição comentada neste blog). A afirmação é absolutamente verdadeira. Na próxima quarta-feira, comentarei neste blog a tradução do Rubaiyat feita por Paramahansa Yogananda a partir do texto de Fitzgerald. Ver-se-á que não tem absolutamente nada em comum com a tradução de Manuel Bandeira, comentada hoje.

Por fim, para que não se pense que o hedonismo de Khayyam é de natureza egoísta ou inconsequente, quero concluir com versos que revelam uma profunda compaixão pelo ser humano: Olha com indulgência os homens/ Que se embriagam. Dize que tens/ Outros defeitos. Se quiseres/ Ter a paz, a serenidade// Volta-te para os deserdados/ Da existência, para os humildes/ Que sob o peso do infortúnio/ Gemem, e sentir-te-ás feliz (3, p. 13).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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