Proezas-1 sepiaA tarde tinha um ar desconsolado. Eram nuvens escuras, iguais a fumaça que não se move, pondo sombras tristes em toda parte. O sol, cor de sangue, dava tons roxos a tudo em que batia. (…) De longe vinha o som de malho a bater em bigorna. Pausadamente. De som em som, enquanto o braço de quem batia ia em cima e descia. E era triste. E saudoso era. Lembrava um sino batendo, distante, lá nos confins. O eco reproduzia o som, que se multiplicava nos vales, e mais baixo pelos quatro cantos repercutia. Entretanto havia silêncio. Fora o sino da bigorna, tudo emudeceu. E só de quando em quando, nos círculos extensos que os pombos faziam, as asas como matracas batiam. Era como se tudo sofresse o efeito de estranha melancolia. O menino Jesus foi ao quintal despedir-se do que havia por lá. Sorriu para a pitangueira, apertando entre os dedos uma folha macia, como se a mão da pitangueira apertasse. Outro adeus deu à goiabeira, mais adiante à romãzeira deu outro adeus. Olhou os passarinhos, e eram muitos. Todos estavam parados, olhando o menino Jesus.

Luís Jardim

[Jardim, Luís. Proezas do Menino Jesus. 2a. Ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1968, p. 117.]

Na última quinta-feira, comentei neste blog um livro para crianças escrito por Luís Jardim, Proezas do Menino Jesus. Relatei a profunda marca que a leitura do livro, feita quando eu contava onze anos de idade, deixou impressa em mim. Destaquei especialmente a última frase do livro. Por motivos que me são alheios e que não me disponho a tentar interpretar neste momento, cometi um lapso ao escrever a frase. Os que leram aquele texto e lerem este que ora apresento, não terão dificuldade em identificar o lapso.

O motivo, porém, de estar hoje dando continuidade ao assunto, não se deve ao lapso, do qual somente agora me dei conta. Faço-o movido por uma outra questão, qual seja, dos motivos que nos levam a escolher um caminho para seguir na vida. Essa é uma questão sobre a qual tenho refletido muitas vezes ao longo dos últimos anos. Em última instância, ela tem seu escoadouro na questão da predestinação, em outras palavras, do destino.

Existe um destino? Em caso afirmativo, ele é predeterminado? Caso seja predeterminado, o que o determina? Ou tudo na vida não passa de acasos encadeados, de uma soma de fatos aleatórios e sem um objetivo predeterminado? O que determina as nossas escolhas? Até que ponto somos, efetivamente, responsáveis por elas? Escolhemos ou somos escolhidos? Existe livre-arbítrio? Se há predestinação, pode-se afirmar que existe livre-arbítrio?

Essas questões são muito inquietantes e confesso que não tenho um ponto de vista formado e absoluto sobre elas. Tenho apenas algumas hipóteses muito parciais. Mas olhando para trás, repassando na memória a minha história de vida e a forma como as coisas foram acontecendo, mais uma questão, e essa inclui todas as anteriores, se me impõe: os fatos da infância determinam o que uma pessoa será na idade adulta? (Propositalmente, me eximo aqui de considerar o ponto de vista psicanalítico). Partindo do pressuposto de que a resposta seja afirmativa, e transformando-se a pergunta numa premissa tomada como verdadeira, pode-se, então, afirmar que os fatos da infância foram antecipações premonitórias da idade adulta.

A questão, posta pela leitura do livro de Luís jardim, continua para mim tão atual quanto esteve há trinta e sete anos, quando li pela primeira vez Proezas do menino Jesus. O último capítulo, de tom absolutamente soturno tanto pelo texto quanto pelas ilustrações – Luís Jardim foi um dos maiores ilustradores que o Brasil já teve – continua me açulando a mente com questões ainda sem resposta. A primeira e a última ilustração do referido capítulo, bem como os primeiros e os últimos parágrafos, hão de reverberar ainda na minha mente por muitos anos, como tem sido desde o final da minha infância e início da adolescência. As palavras iniciais são as que pus em epígrafe a este texto. Quanto às palavras finais, transcrevo-os abaixo (p. 124):   

Olhando o céu, mais feio ainda com nuvens escuras que subiam, envolvendo Proezas-4_tons de cinzatudo com sombras tristonhas, o menino Jesus disse assim: – É hora de partir. Escurece. E Rufo só pode andar devagar. – E você conhece bem o caminho? – João indagou. – Acho que sim – respondeu o menino Jesus. – Qual deles é o seu, se há três caminhos? – perguntou o menino Judas. O menino Jesus sorriu e informou: – Por nenhum dos dois largos, bonitos, cada um ao lado do feio. Os dois largos adiante se desviam, e o feio segue, sempre em linha reta, até se perder de vista. É pelo caminho feio que eu vou, e já sei que ele é cheio de espinhos. Por lá há muitos daqueles, os espinhos chamados coroa-de-cristo. – Qual? – perguntou de novo o menino Judas, olhando os três caminhos. – O do centro. Aquele que leva ao alto, onde no topo está a cruz. Vês? Olha ela lá em cima, de braços abertos, sempre a esperar outros braços.

O menino Jesus deu com a mão, última despedida, e lá se foi, subindo, pelo caminho onde estava a cruz. Sem saber por que, o menino João, de olhos a derramar lágrimas, repetia as palavras do sonho do menino Jesus:

ENSAIAS AGORA, MENINO, TEUS PASSOS DA VIDA DEPOIS.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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