Numa noite, estando todos a dormir, uma das ovelhas grita: “Estou morrendo, irmãos, eis que estou morrendo de fome!” O egrégio pastor levanta-se imediatamente e apressa-se em auxiliar com o devido remédio a ovelha doente. Manda que se prepare a mesa, embora abastecida com iguarias rústicas, onde a água supria a falta de vinho, como [acontecia] frequentemente. Ele próprio começa a comer primeiro e convida os demais irmãos ao ofício da caridade, para que aquele irmão não se envergonhe. “Tendo tomado o alimento no temor do Senhor” (cf. At 2,46; 9,31), para que nada faltasse ao ofício da caridade, o pai teceu uma longa parábola aos filhos sobre a virtude da discrição. Manda oferecer “o sacrifício a Deus” sempre “temperado com sal” (cf. Lv 2,13) e admoesta a cada um que considere as próprias forças “no serviço de Deus” (cf. Jo 16,2). Afirma que subtrair sem discernimento o que é devido ao corpo é pecado semelhante a fornecer-lhe o supérfluo, imperando a gula. E acrescenta: “Sabei que o que fiz ao comer, caríssimos, foi feito por solidariedade e não por vontade, porque a caridade fraterna o mandou. Sirva-vos a caridade como exemplo, não o alimento, porque este serve à gula, aquela ao espírito”.

[Biografias, Primeira de Celano, Cap. XV (A discrição de São Francisco), 22. Em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira… [et. al.]. 2ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 315.] 

A vida de São Francisco de Assis é toda ela apaixonante, tornando-se quase impossível destacar um fato ou episódio do qual se possa dizer o mais belo. Tudo na vida do Pobrezinho de Assis está eivado de extrema beleza. Sua personalidade foi peculiaríssima. Tinha o santo um jeito de ser que cativava e atraía para si quantos tiveram a oportunidade de dele se aproximar. Não deve causar surpresa, portanto, que seja ele um dos santos mais populares da história do cristianismo.

Há um aspecto de sua personalidade, no entanto, que merece especial consideração. Trata-se da sua grande capacidade empática. O Dicionário Aurélio atribui o seguinte significado ao vocábulo: “Empatia: tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outra pessoa”. (Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI. 3ª. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999).

Empatia, portanto, é a capacidade – dificílima, diga-se de passagem – de se colocar no lugar do outro e sentir como aquele sentiria em determinada situação ou circunstância. Pois bem, essa virtude raríssima São Francisco a tinha e demonstrou-o mais de uma vez no trato com os irmãos.

Um dos episódios de sua vida que sempre me encantou e que me tem servido como exemplo desde que o li pela primeira vez ainda na década de oitenta, quando me iniciei nos estudos do franciscanismo, é aquele que transcrevi em epígrafe a este texto.

Narra Tomás de Celano na sua primeira biografia do Santo que um irmão acordou à noite aos gritos, reclamando que estava quase a morrer de fome. Ao ouvir os lamentos, São Francisco levanta-se, manda por a mesa e, chamando os demais confrades, sentam-se todos para comer.

Ao chamar os demais irmãos para que todos se sentassem à mesa para a refeição, teve São Francisco o intuito de evitar constrangimentos ao irmão faminto, pois, caso ele devesse se sentar sozinho para comer, estaria dando uma cabal demonstração de fraqueza, uma vez que somente ele não resistira ao jejum comum no mosteiro.

Mas ao fazê-lo, dá também uma fina demonstração de conhecimento da psicologia humana, ao alertar para o fato de que cada um deve dar ao corpo o que lhe é devido. A admoestação de São Francisco não deixa de causar surpresa, uma vez que se sabe, pelos relatos biográficos,  que ele próprio tratava o corpo com a mais extrema severidade. Em se tratando, porém, de cuidar dos outros, demonstrava uma extrema delicadeza, alertando para que os irmãos evitassem os excessos, tendo o devido cuidado para que respeitassem os próprios limites.

Numa era em que as relações são pautadas pelo mais extremo egoísmo, fruto de uma sociedade absurdamente narcísica, como se faz atual a mensagem de altruísmo e empatia do Pai Seráfico!

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles