Não percebera ainda que a Grande Iniciação acontecia no dia a dia. A Grande Iniciação era apenas viver. A vida acontecia e isso é tudo. Mas aquele homem queria viver coisas extraordinárias. É que para ele a vida não bastava. Ele era sequioso. Queria mais, sempre mais. Ele era um homem insaciável. Por isso cercara-se de Mestres. Mas os Mestres, estes talvez não quisessem a sua companhia. Ouvira dizer que não é o discípulo que busca o Mestre, mas o inverso. E, afinal, é necessário ter um Mestre?

Seguia cabisbaixo imerso nestes pensamentos.

Seguiam ele e Hermas em silêncio pela estrada que os levaria a Tagaste. Por todos esses anos, desde que perdera a fé, buscara indícios de que Deus, de fato, existia, e ainda o escutava. Aquele homem lutava contra si mesmo. Era um dilaceramento sem fim. Nada nem ninguém o respondiam. Buscava uma porta que lhe servisse como possível saída. Mas não vislumbrava portas. Ouvira dizer que “quando Deus nos fecha uma porta Ele abre uma janela”. Mas, naquele momento crucial de sua vida, parece que nem mesmo janelas havia. Ele estava só com o imenso, o cruciante silêncio de Deus. Em dicionário algum encontraria o necessário e absoluto adjetivo para qualificar o que sentia.

Enquanto seguiam, o único rumor que ouviam era o de seus passos na estrada poeirenta e assobio do vento que passava acariciando-lhes o corpo. Esperava uma palavra de Hermas que lhe desse um lento, por mínimo que fosse. Mas Hermas, naquele dia, era o silêncio em pessoa.

Estaria ele vivendo uma grande quimera? E as escrituras, estavam todas equivocadas? O grade equívoco… Sabia de vidas desperdiçadas, vidas dilaceradas pela quimérica busca que se revelara, por fim, não mais que um grande equívoco. Aquele homem tremia. Ninguém se dispusera ainda a lhe atribuir um nome. Mas ele precisava ser nomeado. No dia anterior Hermas lhe falara do nome. Mas antes de ganhar um nome, ele precisava nomear aquilo que vivia. Ele precisava nomear o caminho.

Aquele silêncio do Universo era um espinho fincado na carne. Doía-lhe como um cilício que lhe penetrasse a pele rasgando-a e fazendo sagrar. Lembrou que lera sobre a vida de santos e monges que impunham a si mesmo o uso do silício como forma de aperfeiçoamento e purgação de suas faltas. Mas ele, ele não precisava de um cilício material, aquele silêncio cortante como navalha superava em tudo o mais trucidante objeto de tortura.

Ele agora abusava dos adjetivos e das metáforas. Mas como qualificar aquilo que experimentava, senão apelando para a linguagem, tão pobre em recursos quando se tratava de dizer do sentido? Ele, porém, não estava só nesta busca. Essa história se repetia há séculos. Mas naquele momento a experiência dos outros que veio antes dele de nada lhe valiam. Saber daquelas vidas e histórias não lhe servia como lenitivo para a alma exangue pelos muitos anos de busca sem que obtivesse uma resposta.

Porque ele não tinha qualquer garantia de que encontraria a resposta. Ninguém tem. Os que enveredam pelo caminho que ele trilhava não têm garantias. Têm apenas a busca. Estes são os danados, os que tiveram coragem de se lascar. Estava na imin6encia de se lascar. Dava a última gota do seu sangue, mas não desistia. Pelo menos, não o fizera ainda.    

Tagaste acenava-lhe com as possíveis respostas em vão até agora buscadas. Encontraria a solução para o grande enigma que se propusera investigar? Silêncio. Silêncio. Silêncio. Talvez o vento lhe estivesse sussurrando, na amplidão daquela estrada que o levava quiçá a lugar nenhum, um possível indício, uma possível chave que lhe abrisse o baú onde encontraria, impressas, as palavras ansiosamente buscadas.

Por enquanto, porém, impunha-se o silêncio, a ele e a Hermas, com quem seguia como se um não se apercebesse da presença do outro.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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