242474_4As notas de viagem que recolhi quase taquigraficamente tomam aqui forma menos impressionista que expressionista. Chegam algumas a ser reação crítica – e não apenas lírica – ao que observei. Outras a servir de pretexto a comentários às vezes abstratos. Até a devaneios especulativos. A expansões autobiográficas de que peço perdão aos sociólogos que às vezes me supõem preso a eles por votos, que nunca fiz, de castidade sociológica. Direitos de expressionista que pode passar do fato concreto à abstração, do objetivo ao transobjetivo, do social ao pessoal, dentro da técnica de que, aliás, foi mestre, em língua portuguesa, o hoje reabilitado, mas sempre inclassificável, autor de “Peregrinação”.

Gilberto Freyre

[Freyre, Gilberto. Aventura e Rotina. Prefácio por Alberto da Costa e Silva. – 3ª. ed. revista com 45 ilustrações. Rio de Janeiro: Topbooks: UniverCidade, 2001, p. 29.]

 Os leitores que têm lido os meus textos neste blog desde o início sabem que estreei com um pequeno panegírico a Gilberto Freyre. Entre as poucas raridades da minha pequena biblioteca, exibo com orgulho a edição de Casa Grande e Senzala autografada pela filha do Mestre de Apipucos, Dona Sônia Freire,  a quem tive o grande privilégio de conhecer pessoalmente. Gilberto Freyre é para mim muito mais que um Mestre, é um exemplo de vida por tudo o que foi e fez. Pois bem, aqui estou mais uma vez a dedicar algumas linhas a este grande intérprete da nossa brasilidade.

Em 1951, a convite do ministro português de ultramar, Sarmento Rodrigues, Gilberto Freyre partiu para uma viagem de seis meses que incluía Portugal e suas possessões africanas e asiáticas. A viagem foi realizada em parte sozinho e, em parte, em companhia da família. A jornada teve início em Lisboa, prosseguindo por Coimbra, Porto, Évora, Fátima, Braga, Bragança, Nazaré, entre outras. Depois seguiram para a Guiné Portuguesa, passando por Senegal e Ziguichor. Viria, ainda, a Índia Portuguesa, com desembarque em Bombaim seguindo para Goa. Esteve, ainda, em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola, Moçambique e Ilha da Madeira.

Em consequência da viagem, Gilberto Freyre legaria aos seus leitores um belo livro, intitulado Aventura e Rotina, cuja primeira edição foi publicada em 1953. Em 1980 veio a lume uma segunda edição. Mais recentemente, a Topbooks publicou uma terceira edição, revista, em convênio com a UniverCidade. O livro traz também 45 fotografias tiradas durante o périplo de Gilberto Freyre.

Como tudo que emana da pena do Solitário de Apipucos, a leitura de Aventura e Rotina proporciona imenso prazer. Observações de cunho antropológico e sociológico se sucedem, mesmo que o autor não tenha almejado elencá-las sob estes rótulos. Encontram-se no livro observações sobre hábitos e costumes não raras vezes exóticos e estranhos. A descrição de alguns desses hábitos pode, inclusive, despertar em algumas pessoas uma certa repulsa. Cite-se, por exemplo, o caso das garotas tatuadas da Guiné, assim descrito por Freyre: 

Volto às tatuagens para observar que nunca pensei, antes de vir à Guiné,

Em Caió, na Guiné: raparigas manjacas tatuadas. ((Foto Antônio Carreira - 09/10/1951)

Em Caió, na Guiné: raparigas manjacas tatuadas. (Foto Antônio Carreira - 09/10/1951)

ser possível a um corpo de homem ou de mulher ainda moça, às vezes quase menina, conter tantas e tão profundas incisões, recortadas em tão diferentes formas sobre carne jovem e às vezes virgem. São os corpos pardos ou quase pretos, assim tatuados, como se fossem bolos de chocolate que a doceira tivesse decorado com desenhos de flores, estrelas, pássaros. Bolos de noiva. Bolos de carne com aparência dos de chocolate; com os mesmos recortes sensualmente artísticos ou esteticamente afrodisíacos para atraírem a gula dos indiferentes ou dos frios de apetite. E na verdade são assim tatuados que certos corpos de meninas ainda virgens e sem ancas de mulher são entregues a velhos de prestígio que patriarcalmente se servem delas e dessa mocidade ou desse verdor de sexo como podem (p. 241).

Em virtude de a viagem ter se realizado por iniciativa do governo português Antônio de Oliveira Salazar, Gilberto Freyre foi alvo de muitas críticas por ter aceitado o convite. Vale, a propósito, transcrever aqui o que disse Alberto da Costa e Silva com relação a tais críticas.  Em Notas de um companheiro de viagem, texto escrito em 1999 e posto na edição atual a guisa de prefácio, o historiador e diplomata afirma:

Ainda bem que Gilberto Freyre aceitou o convite se Sarmento Rodrigues. A indignação, a zanga, os arrufos e os calundus dos seus amigos anti-salazaristas perderam-se no passado. Conosco ficou este livro, mais de aventura que de rotina. Um livro escrito por um grande escritor. Um livro armado de esporas. Um livro que reclama de quem lê que comece a ver o Brasil de fora para dentro e a ligá-lo ao resto do  mundo. Pois parte da história dos brasileiros – cochicha Gilberto Freyre – desenrolou-se nos oceanos e no além-mar, assim como parte da história dos portugueses, dos italianos, dos ambundos, dos congos, dos iorubas, dos fons e de outros povos e outros continentes se prolongou no Brasil. O Índico chegava até a foz dos nossos rios, e o Atlântico entra por eles terra adentro (p. 24).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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