Assim, passamos a ter certeza de que a alma pode prescindir de todas as coisas, menos da Palavra de Deus, e fora a Palavra de Deus nada mais pode auxiliá-la. Quando, porém, ela possui a Palavra, de nada mais necessitará, pois na Palavra ela encontrará satisfação, alimento, alegria, paz, luz, ciência, justiça, verdade, sabedoria, liberdade e todos os bens em abundância.

Martinho Lutero

Lutero, Martinho. Da liberdade do cristão (1520): prefácios à Bíblia. Tradução de Erlon José Paschoal. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 27. – (Ariadne)

Há alguns dias postei neste blog um texto no qual me referia a uma antiga tradição cristã conhecida por sortes apostolorum, que consiste em abrir a Bíblia aleatoriamente em busca de orientação. Uso frequentemente este artifício, e devo dizer que a prática me tem sido muito útil  tanto quanto me proporcionado valiosos insights em diversas ocasiões.

A Bíblia é, de fato, a pedra angular do cristianismo e, para um cristão, não há bússola melhor quando se trata de buscar uma orientação em momentos de dificuldade. É necessário, porém, prudência ao se valer do Texto Sagrado com este objetivo. Parece-me que há situações em que a pessoa se encontra numa tensão tal, que a consulta, ao invés de orientar, mais desorienta.

Recordo uma amiga que me relatou um episódio em que, aflita devido a uma situação por que passava seu esposo, resolveu consultar a Bíblia em busca de orientação. Qual não foi sua surpresa quando, uma vez aberto o Livro Santo, seus olhos posaram sobre versículos que falavam de morte e assassinato. Pior foi constatar que a figura a que se referia o texto tinha, exatamente, o nome do seu marido. Atônita e mais confusa ainda, fechou a Bíblia. “Antes não tivesse feito a consulta”, disse-me ela. São conhecidas, também, muitas histórias de pessoas que cometeram grandes desvarios por se julgarem inspiradas por Deus em virtude da leitura de um determinado trecho bíblico.

Tudo que diz respeito à religião exige cuidado e prudência. São numerosos os casos de pessoas que fazem uso da religião de forma absolutamente neurótica e patológica. A maturidade espiritual é uma conquista, e essa, pouca gente atinge. Ela é fruto de uma busca, e que busca! É por isso que tremo de medo e pavor com certas práticas e atos que vejo serem disseminados mundo afora em nome da religião. Muita atrocidade e desvario já foram cometidos em nome de Deus. Neste terreno, portanto, toda prudência é pouca.

No que respeita ao uso do texto bíblico, portanto, não poderia ser diferente. O perigo do fanatismo é grande.  O risco de uma leitura fundamentalista assoma a todo momento, e o sofrimento perptetrado à humanidade pelas nefastas consequências do fundamentalismo tem sido enorme.

A Bíblia, de fato, contém palavras de vida, que confortam e alimentam. Dependendo do uso que se faça do Texto Sagrado, porém, o alimento poderá se revelar indigesto e destrutivo.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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