Ninguém poderá ter dúvidas: se existir uma instituição da nossa cultura tradicional que merece que não nos contentemos somente com o conhecimento de sua superfície, mas que aprofundemos com todo cuidado e amor sua gênese e sua evolução e que procuremos conhecer o sentido último de seus detalhes, então esta é, mesmo salvo considerações mais profundas, a liturgia da Santa Missa que é celebrada diariamente em centenas de milhares de altares, e para a qual acorre a cada domingo todo o povo cristão.

Josef A. Jungmann S.J.

[Jungmann, Josef A. Missarum sollemnia: origens, liturgia, história e teologia da missa romana. Tradução de Monika Ottermann. – 5ª. ed. corr. – São Paulo: Paulus, 2009, p. 5.]

Apesar de todos os reveses pelos quais tem passado a minha fé, nunca consegui assistir indiferente a uma missa. Sinto brotar em mim um senso de reverência que se impõe naturalmente cada vez que o sacerdote ergue a hóstia no momento da consagração. Parece que, efetivamente, presencia-se naquela ocasião um evento de índole sobrenatural. Considero aquele um momento de tal grandiosidade e mistério que, parece-me, apenas o mais absoluto silêncio pode ser-lhe condizente. Por esse motivo, procuro me manter silenciosamente até mesmo em pensamento, permanecendo apenas presente, absolutamente presente, sem em nada pensar. No momento da transubstanciação, permito-me experimentar o silêncio absoluto e intransponível de Deus. Ante mistério de tamanha grandiosidade, inatingível para a limitada mente humana, esta é, parece-me, a única atitude lícita, pois ali Deus se faz homem e se dá a experimentar sob as espécies do pão e do vinho.

A questão da transubstanciação tem feito rolar muita tinta da pena de teólogos e eruditos ao longo dos séculos. O tema tem motivado discussões e debates sempre acalorados. A origem do rito remonta àquele que pode ser considerado o episódio fundador do cristianismo: a instituição da Eucaristia por Cristo na última ceia, assim narrado por Lucas: 

Chegada que foi a hora, Jesus pôs-se à mesa, e com ele os apóstolos. Disse-lhes: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer. Pois vos digo: não tornarei a comê-la, até que ela se cumpra no Reino de Deus”. Pegando o cálice, deu graças e disse: “Tomai este cálice e distribuí-o entre vós. Pois vos digo: já não tornarei a beber do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus”. Tomou em seguida o pão e depois de ter dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo tomou também o cálice, depois de cear, dizendo: “Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós…” (Lc 22, 14-20). 

Santa Ceia. - Juan de Juanes (1523-1579)

Santa Ceia. - Juan de Juanes (1523-1579)

Jung reconheceu no rito cristão da missa uma função psicológica muito importante, o que o motivou a dedicar dois estudos ao assunto. Na introdução ao primeiro desses estudos, afirma o psicólogo suíço: “A missa é um mistério ainda bastante vivo, cujos primórdios remontam aos primeiros tempos do Cristianismo. Seria supérfluo insistir que essa vitalidade se deve a um dinamismo psicológico indubitável, e isso implica que a Psicologia deve estudá-la. É óbvio que tal estudo só pode ser feito de um ponto de vista puramente fenomenológico, pois as realidades da fé ultrapassam o domínio da Psicologia” (Jung, C. G. O símbolo da transformação na missa. Em: Psicologia da religião ocidental e oriental. Tradução do Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. – Petrópolis: Vozes, 1983, p. 205.- (Obras completas de C. G. Jung, v. 11).

No rito da missa, parece-me, está condensado todo o mistério da encarnação e revelação cristãs. Talvez exatamente nesse aspecto resida o seu poder de despertar e mobilizar afetos de uma magnitude tal que seus efeitos talvez não tenham sido ainda devidamente aquilatados.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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