Um mito é um modo de dar sentido a um mundo sem sentido. Mitos são padrões narrativos que dão significado à nossa existência. Se o sentido da existência é apenas o que colocamos na vida por nossa própria força individual, como Sartre defenderia, ou se existe um sentido que precisamos descobrir, como afirmaria Kierkegaard, o resultado é o mesmo: os mitos são nosso modo de encontrar esse sentido e esse significado. Mitos são como as vigas de uma casa: invisíveis a uma visão exterior, são a estrutura que mantém a casa de pé para que as pessoas possam morar nela. Criar mitos é essencial para se obter saúde mental e o terapeuta compassivo não o desencorajaria. Na verdade, a real origem e proliferação da psicoterapia em nossa era contemporânea advieram exclusivamente da desintegração de nossos mitos.

Rollo May

[May, Rollo. A procura do mito. Tradução de Anna Maria Dalle Luche. – São Paulo: Manole, 1992,  p. 3.]

As sociedades arcaicas, seja as que já desapareceram, seja as que ainda subsistem em pleno século XXI, são pródigas em mitos e ritos. Os mitos são histórias, geralmente transmitidas de geração a geração através da tradição oral, que remetem aos tempos primordiais, às origens. Os mitos visam, sobretudo, explicar porque as coisas são como são. Ao contrário do que muitos, erroneamente, pensam, os mitos não são invenções arbitrárias de mentes imaginativas. Pelo contrário, os mitos surgem de fontes arquetípicas para dar conta de uma realidade à qual, de outra forma, não se poderia ter acesso. Nesse sentido, os mitos guardam certa similaridade com os sonhos.

Já os ritos são a forma que os agrupamentos humanos encontraram de dramatizar os mitos. Pode-se afirmar que os rituais são a teatralização dos mitos. Toda sociedade tem seus mitos fundadores, mesmo as mais desenvolvidas. Engana-se quem pensa que mito é coisa do passado ou de sociedades subdesenvolvidas. Vários autores que dedicaram muitos anos de estudos e pesquisas aos mitos, concluindo que eles são mais presentes e atuantes do que se poderia supor. Entre tais autores destacaríamos dois: Joseph Campbell e Rollo May.     

A ritualização dos mitos permitia aos membros de uma determinada sociedade vivenciar as diversas etapas da vida sob a lógica de um processo de iniciação. Algumas mudanças, que ainda hoje são vivenciadas como rupturas, como é o caso da passagem da infância para a adolescência, ou da adolescência para a idade adulta; o casamento, a morte, o nascimento de uma criança etc., tudo era ritualizado e tudo era explicado sob a perspectiva de um determinado mito. Quando as sociedades modernas sepultaram os seus mitos, perderam, com isso, o contato com aquilo que conferia um sentido à vida, tanto à vida em comunidade quanto à existência individual. O resultado foi que o indivíduo se viu  só, sem ter como resolver suas angústias existenciais, o que acabou por precipitá-lo num niilismo vazio e caótico.

Uma vez tendo perdido o contato com suas raízes míticas mais profundas, restou-lhe como alternativa refugiar-se na neurose. O neurótico vive perdido num mundo de fantasias. A fantasia, em si, não é um mal. A arte, como se sabe, tem na fantasia uma de suas fontes mais profícuas. O mal está em não encontrar um sentido para a fantasia. Nesse caso, o contato com os mitos pode oferecer ao indivíduo uma alternativa. A fantasia, quando contextualizada numa perspectiva mítica, pode-se revelar um instrumento poderoso no tratamento das neuroses.

Mas para que isso seja viável é necessário, antes, ter acesso ao mito que o indivíduo está vivenciando. É interessante observar que todos nós repetimos em nosso dia a dia, sem que disso nos demos conta, padrões míticos. Recordo que um dos grandes momentos de ultrapassagem no meu tempo de análise foi quando o meu psicanalista me fez ver que, ante uma determinada situação na qual eu “emperrara”, eu estava repetindo o mito de Sísifo. Sísifo fora condenado a rolar eternamente uma enorme pedra montanha acima. Quando estava quase atingindo o topo da montanha, a pedra rolava encosta abaixo e Sísifo tinha que começar tudo de novo. E assim, indefinidamente, nunca atingindo o topo da montanha.

Era isso que eu estava fazendo. Quando estava quase atingindo o meu objetivo, inconscientemente eu dava um jeito de fazer a minha pedra rolar montanha abaixo, e lá se iam todos os meus esforços, como afirma o dito popular, por água abaixo, tendo que recomeçar tudo outra vez. Reconhecer esse aspecto do meu comportamento provocou em mim uma grande mudança. Tentar compreender que padrões míticos estamos repetindo em nossas vidas é um bom caminho para a sempre almejada mudança de comportamento, de forma que possamos quebrar o círculo vicioso da neurose.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles