762259Foi muito divertido preparar a minha lojinha para receber os livros. Seguindo a recomendação dos Wright-Worthing (amigos meus que eram donos do antiquário Lâmpada de Aladim, na rue des Sts. Péres), cobri de aniagem as paredes úmidas; o estofador corcunda que realizou essa tarefa ficou muito orgulhoso do acabamento canelado com que arrematou os cantos. Um carpinteiro colocou as prateleiras e fez as vitrines em que os livros seriam expostos, e contratei um pintor para cuidar dos poucos metros de frente – a que ele se referia como façade [fachada], prometendo que, quando terminasse, ela ficaria tão bonita quanto a do Bazar de l’Hôtel de Ville, sua mais recente realização. Por fim, um “especialista” veio pintar o nome “Shakespeare and Company”sobre a porta.

Sylvia Beach

[Beach, Sylvia. Shakespeare and Company: Uma livraria na Paris do entre-guerras. Tradução de Cristiana Serra. – 2ª. ed.- Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004, p. 41].

Para os amantes dos livros, poucos prazeres se equiparam a uma incursão pelas prateleiras de uma boa livraria. Isso inclui conversas com outros clientes, habitués com os quais um frequentador assíduo acaba travando algum conhecimento. Quando é uma daquelas livrarias em que o proprietário ou a proprietária estão sempre por perto, o prazer, então, é redobrado. Um bom livreiro conhece os seus clientes, os recepciona pessoalmente e, quando aparece uma novidade que ele sabe que pode ser do interesse de um determinado freguês, não hesita em deixar reservada para mostrar na próxima vez que este aparecer.

Para os leitores e colecionadores que têm o hábito de frequentar livrarias movidos por algo mais que o simples objetivo de entrar às pressas, comprar o livro de seu interesse e sair sem nem ao menos dar uma olhada nas prateleiras, o livro Shakespeare and Company: Uma livraria na Paris do entre-guerras, escrito pela livreira Sylvia Beach, há de ser leitura especialmente prazerosa.

Sylvia Woodbridge Beach nasceu na Costa Leste dos Estados Unidos, em 14 de março de 1887. Em 1919, residindo em Paris, resolveu abrir uma livraria com o objetivo de se especializar na importação de obras em inglês, destinadas aos seus patrícios residentes na capital francesa. A livraria, que recebeu o nome de Shakespeare and Company, foi aberta na rue Dupuytren, em 17 de novembro daquele ano. Em julho de 1921, a Shakespeare and Company foi transferida para seu endereço definitivo, na rue l’Odéon, nº 12. Vinte anos depois, em 1941, o estabelecimento seria definitivamente fechado. O sucesso, no entanto, foi grandioso, tornando tanto a livraria quanto sua proprietária verdadeiras lendas no meio cultural parisiense. Em 1951, George Whitman abriu uma nova Shakespeare and Company, na rue de la Bucherie, nº 37, onde permanece até hoje. Sylvia Beach faleceu em 5 de outubro de 1962.

Sylvia era uma figura carismática. Isso contribuiu muito para o sucesso da Shakespeare and Company. Logo a livraria se tornaria reduto de vários escritores e intelectuais tanto franceses quanto estrangeiros. Sua relação com todos estes clientes e amigos é o que constitui a matéria do livro Shakespeare and Company: Uma livraria na Paris do entre-guerras, publicado em 1959, no qual a autora narra as memórias dos tempos em que a livraria estava em atividade. Entre os escritores abordados no livro, um merece destaque todo especial. Trata-se de James Joyce, autor do “Ulisses”, livro que foi originalmente publicado por Sylvia Beach. Aliás, saliente-se, este foi o único livro publicado por ela. A propósito de Joyce, escreve a autora:

“Na livraria, Joyce travou conhecimento com vários jovens escritores que se tornaram seus amigos: Robert McAlmon, William Bird, Ernest Hemingway,

Sylvia beach e james Joyce na porta da Shakespeare and Company

Sylvia Beach e James Joyce na porta da Shakespeare and Company

Archibald MacLeish, Scott Fitzgerald, além do compositor George Antheil. Joyce era, claro, seu deus, embora a atitude deles a seu respeito fosse mais de amizade que de veneração. Quanto a Joyce, tratava as pessoas invariavelmente como suas iguais, fossem escritores, crianças, garçons ou camareiras. Tudo o que tinham a lhe dizer o interessava; ele me disse que nunca havia conhecido ninguém chato. Eu às vezes o encontrava esperando por mim na livraria, ouvindo atentamente uma longa história que minha concierge lhe contava. Se tomasse um táxi, só saía depois que o motorista tivesse terminado o que estava dizendo. O próprio Joyce fascinava a todos; ninguém conseguia resistir ao seu charme” (p. 67).

Talvez se não fossem os esforços de Sylvia Beach para publicar “Ulisses”, não tivéssemos hoje o privilégio de contar com esta obra que constitui um marco e divisor de águas na literatura ocidental. Não foram poucos os percalços enfrentados por ela para editar os primeiros exemplares da monumental obra de Joyce. Todas as etapas do longo e estafante processo de publicação do “Ulisses” são relatadas por Sylvia no seu belo livro.

A propósito do carisma de Sylvia Beach como livreira, escreveu James Laughin no texto de Apresentação: “Ao contrário da maioria dos livreiros de hoje em dia, Sylvia encorajava os fregueses a examinar os livros. A Shakespeare and Comapny não era só um negócio, mas uma causa, a causa da literatura da melhor qualidade” (p. 20).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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