Foi enquanto estava a caminho de Damasco, munido da ordem do sumo sacerdote para capturar os que ali haviam procurado refúgio contra a perseguição, que Paulo foi confrontado pelo Cristo ressuscitado e exaltado, deu meia-volta e pediu para ser emissário de Cristo para o mundo gentio. Esse encontro pessoal com Cristo determinou todo o curso do pensamento e da ação subsequentes de Paulo. Até aquele momento, Paulo considerava axiomático que alguém que tinha tido uma morte na qual a maldição divina fora pronunciada pela lei (Dt 21,23) não podia ser o Messias, o eleito de Deus, como seus seguidores proclamavam. Essa proclamação era blasfema. Mas agora o que proclamava era manifestamente verdade. Ele viu e ouviu Jesus, o crucificado, vivo e glorificado.

F. F. Bruce

[Hawthorne, Gerald F.; Martin, Ralph P.; Reid, Daniel G. [orgs.]. Dicionário de Paulo e suas cartas. Tradução de Barbara Theoto Lambert. São Paulo: Paulus: Vida Nova: Loyola, 2008. Artigo: Paulo nos atos e nas cartas, F. F. Bruce,  p. 941.]

O episódio da conversão de São Paulo nos coloca diante de vários mistérios, especialmente o que concerne à missão, ao chamado, à realização de uma vontade que não é exatamente a nossa, mas, na perspectiva paulina, de Deus. E quanto se poderia dizer sobre essa controvertida e complexa questão. A história do cristianismo está repleta de atos atribuídos à vontade de Deus. O tema é por demais complexo para ser resumido em poucas palavras. É assunto para um tratado teológico.

Tenho despendido muito tempo ao estudo dessa questão. Interessa-me estudá-la tanto nos seus aspectos psicológicos quanto teológicos, embora esteja mais apto a falar dela na primeira perspectiva, uma vez que não sou teólogo, mas psicólogo. No âmbito da psicologia, quem mais se dedicou à questão foi o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Embora Jung a tenha abordado sob a ótica da psicologia, de alguma forma tocou, também, o aspecto teológico.

Segundo Jung, todos nós passamos por uma grande mudança na fase que liga a primeira à segunda metade da vida. Em geral, essa mudança se dá através de uma crise que envolve, especialmente, os valores do indivíduo. Para denominar esse momento de transformação, Jung usou a palavra metanóia. Paolo Francesco Pieri, no Dicionário Junguiano, assim define metanóia:

“Termo grego com o qual, no Novo Testamento, indica-se a transformação da própria identidade pessoal depois de uma experiência que transforma os valores até então adotados pelo indivíduo. Jung retoma o termo para indicar o fenômeno de crise psicológica através do qual sucede a inversão radical de todos os valores sobre os quais está ordinariamente fundamentada a existência de um homem. A ilustração clássica da metanóia dá-se por ocasião da análise do limiar que liga e distingue a primeira e a segunda metade da vida: nessa fase de passagem por-se-iam na sombra todos os valores sobre os quais o indivíduo está fundamentado, e contemporaneamente por-se-iam em andamento outros valores que estão em oposição com aqueles” (Piere, Paolo Francesco. Dicionário Junguiano. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2002, p. 323).

A experiência de São Paulo a caminho de Damasco cabe perfeitamente na definição junguiana de metanóia. De fato, ela se impõe como exemplo paradigmático de metanóia, seja pela forma como acontece, seja por suas consequências. No caso, ocorre uma mudança radical de todos os valores. Paulo passa, num átimo, de perseguidor a defensor daquele a quem perseguia. Não muito tempo depois, se tornará, ele próprio, perseguido. Na próxima semana, darei continuidade ao tema, analisando alguns aspectos da metanóia paulina a partir do episódio tal como se encontra narrado nos Atos dos Apóstolos.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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