Existe um rico universo imagético com profundas raízes na memória do homem moderno, mas a que este não tem acesso através de coletâneas publicadas, permanecendo oculto em velhos manuscritos e textos impressos. Estes constituem os eternos “vestíbulos de Los, o profeta da imaginação, repletos de gravuras exemplares e de figuras platônicas, que regem a nossa compreensão do mundo e de nós próprios, e acerca delas o poeta William Blake (1757-1827) diz que “todas as coisas que acontecem na Terra se refletem aí” e que “é a paritr dessas obras que cada época renova as suas forças” (Jerusalem, 1804-820).

Alexander Roob

[Roob, Alexander. O Museu Hermético: Alquimia e Misticismo. Tradução de Teresa Curvelo, Portugal. Taschen, 1997, p. 8].

DSC03805Há muitos anos mandei entalhar em madeira uma serpente mordendo a própria cauda, dentro da qual fiz inscrever, em latim, a seguinte sentença: Noli foras ire, in interiore homine habitat veritas. Na ocasião, eu andava muito envolvido com a leitura de livros sobre alquimia e hermetismo. No livro em que encontrei a sentença, ela era citada como sendo uma máxima alquímica, não sendo mencionado o autor. Alguns anos mais tarde, descobri-lhe a verdadeira origem.  

Seu autor foi Santo Agostinho. A frase se encontra no capítulo 39 do livro A verdadeira religião.Transcrevo, na íntegra, o parágrafo: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão” (Santo Agostinho. A verdadeira religião; O cuidado devido aos mortos. Tradução de Nair de Assis Oliveira. – São Paulo: Paulus, 2002, p. 98).

Quanto à serpente que morde a própria cauda, chamada uroborus ou oroborus, é uma das imagens mais conhecidas da alquimia. Dentre os vários símbolos que lhe são atribuídos, o mais comum é o Eon, a totalidade do tempo e do espaço. Simboliza, ainda, a existência, seja na perspectiva individual, seja na perspectiva cósmica. O uroboros é, na verdade, a própria vida, completa em si mesma, pois, no fim, se retorna sempre ao início, ao ponto de onde tudo partiu, ou seja, como se fora uma serpente que mordesse a própria cauda.

Os símbolos têm um poder muito grande de evocar os aspectos mais misteriosos da realidade, motivo pelo qual estão presentes em todas as religiões. Mas eles aparecem especialmente nas grandes escolas de mistério, como no pitagorismo e no hermetismo. Creio que a busca da verdade no interior do próprio homem, como afirma Santo Agostinho, é um projeto que, se levado a série, promete muitas aventuras, emoções e descobertas fascinantes. Os caminhos para tal busca, porém, são diversos. As religiões mais arcaicas se ofereciam ao indivíduo como um desses caminhos. Quanto às grandes religiões, na forma como se oferecem hoje, excessivamente burocratizadas e hierarquizadas, consequência natural do seu alto nível de institucionalização, já não cumprem tal função a contento.

Qual a consequência disso? Muita gente perdida, sem ter a quem ou a que recorrer. A vida perdeu muito o sentido do mistério, da transcendência. Viver a própria vida como uma grande jornada inicática é, seguramente, uma das mais belas e emocionantes formas de viver. E isso pode ser feito sem que a pessoa tenha, necessariamente, que estar inserida numa determinada instituição, seja ela religiosa ou iniciática. Jung é um bom exemplo disso. Esse, no entanto, não é um projeto de fácil realização, muito pelo contrário. Mas o risco, posso assegurar, vale a pena. Basta seguir procurando os símbolos que irão, gradativamente, servindo como expressão e confirmação do caminho. Quando estamos no caminho e em busca, eles se insinuam sempre, de maneiras diversas, basta estar atento para percebê-los e intuir-lhes o significado. O uroborus é um destes símbolos. 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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