Sem dúvida nenhuma, Dioniso é o pai de Apolo, pelo menos é seu gênio inspirador, seu musageta. E essa paternidade é julgada tão vergonhosa que há um empenho constante em esconder essa genealogia. A idéia de que um pensamento possa ser produzido tão radicalmente por um corpo choca as consciências que têm familiaridade com a história da filosofia. Uma carne habitada pelo entusiasmo, pela desordem e uma estranha parcela que lembra a loucura, a histeria, a possessão, é o que parece excêntrico, incongruente. No entanto, muitos filósofos conheceram o que poderíamos chamar de hápax existenciais, experiências radicais e fundadoras ao longo das quais do corpo surgem iluminações, êxtases, visões que geram revelações e conversões que se configuram em concepções do mundo coerentes e estruturadas.
Michel Onfray
[Onfray, Michel. A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. Tradução de Monica Stahel. – São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29- (Mesmo que o céu não exista)].
Há muitos dias não postava nada neste blog. Poderá ter parecido estranho a alguns leitores que me têm acompanhado ao longo dos últimos seis meses. O fato, porém, é que há algum tempo eu já vinha pensado nos rumos que deveria dar aos textos postados por mim. Durante o mês de dezembro, devido a uma série de fatores que me provocaram diversas reflexões, mais que apenas um desejo, uma mudança de rumo se tornou um imperativo. Despeço-me, portanto, dos leitores, com este texto, que prenuncia e antevê algumas novas perspectivas com relação à continuidade do blog em 2010.
Propositalmente, estou encerrando o ano de 2009 com a citação de um pequeno trecho do filósofo francês Michel Onfray no qual ele fala de um conceito do qual gosto muito: hápax existencial. Da maneira como o entendo, o hápax existencial se aproxima bastante do conceito de metanóia, a que já me referi em alguns textos anteriores. Uma grande diferença, porém, deve ser mencionada. Quase sempre, quando algum autor se refere a metanóia, faz tender a mudança sempre no sentido da espiritualidade. A metanóia, tal como é habitualmente tratada e entendida, desemboca, quase sempre, na idéia de conversão, sendo essa tomada na perspectiva religiosa.
No caso do hápax existencial, porém, tal como proposto por Michel Onfray, a mudança operada é de uma outra ordem. No livro do qual tirei o trecho que cito a guisa de epígrafe a este texto, o autor começa narrando um fato a que atribui o valor de hápax existencial, quando sofreu um enfarte. Escreve Onfray:
“A concentração da dor em um ponto de atordoante densidade abolira toda distância entre a dor e a consciência que pudesse apreendê-la. Uma estranha alquimia liquefazia a carne em energia ardente. Cada instante ameaçava uma pulverização que significaria o fim – que eu desejava. O médico diagnosticou um enfarte, eu ia fazer vinte e oito anos, e naquela segunda-feira, 30 de novembro, meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo” (p. 13).
Michel Onfray é um dos meus autores prediletos. Já li quase todos os seus livros traduzidos no Brasil. No momento me deleito com a leitura do volume dois de sua Contra-história da filosofia. Propositalmente inverti a ordem da leitura, começando pelo volume dois, deixando o um para ler a seguir. Incluí dois livros seus na minha prateleira de livros-talismã: “A arte de ter prazer” e “A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão”. Dos dois guardo citações que releio com frequência, pelas muitas reflexões que me têm provocado, geralmente com a consequente deflagração de excelentes insights, como essa, por exemplo: “Uma filosofia é a tentativa de dizer o que um corpo exige” (p. 78).
Para concluir, cito um trecho de uma entrevista concedida por Michel Onfray à Revista República, em outubro de 2001, que para mim – como bom leonino sempre dividido entre as, mais que contraditórias, complementares tendências apolíneas e dionisíacas -, faze um eco todo especial: “O real vive, não se pode tentar circunscrevê-lo com um método fixo, fechado, morto. Para mim, Dioniso prevalece sobre Apolo, o que não significa dizer que dispenso os serviços deste último”.