Sem dúvida nenhuma, Dioniso é o pai de Apolo, pelo menos é seu gênio inspirador, seu musageta. E essa paternidade é julgada tão vergonhosa que há um empenho constante em esconder essa genealogia. A idéia de que um pensamento possa ser produzido tão radicalmente por um corpo choca as consciências que têm familiaridade com a história da filosofia. Uma carne habitada pelo entusiasmo, pela desordem e uma estranha parcela que lembra a loucura, a histeria, a possessão, é o que parece excêntrico, incongruente. No entanto, muitos filósofos conheceram o que poderíamos chamar de hápax existenciais, experiências radicais e fundadoras ao longo das quais do corpo surgem iluminações, êxtases, visões que geram revelações e conversões que se configuram em concepções do mundo coerentes e estruturadas.

Michel Onfray

[Onfray, Michel. A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. Tradução de Monica Stahel. – São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29- (Mesmo que o céu não exista)].

Dioniso. Obra de Michelangelo (1475-1564)

Dioniso. Escultura de Michelangelo (1475-1564)

Há muitos dias não postava nada neste blog. Poderá ter parecido estranho a alguns leitores que me têm acompanhado ao longo dos últimos seis meses. O fato, porém, é que há algum tempo eu já vinha pensado nos rumos que deveria dar aos textos postados por mim. Durante o mês de dezembro, devido a uma série de fatores que me provocaram diversas reflexões, mais que apenas um desejo, uma mudança de rumo se tornou um imperativo. Despeço-me, portanto, dos leitores, com este texto, que prenuncia e antevê algumas novas perspectivas com relação à continuidade do blog em 2010.

Propositalmente, estou encerrando o ano de 2009 com a citação de um pequeno trecho do filósofo francês Michel Onfray no qual ele fala de um conceito do qual gosto muito: hápax existencial. Da maneira como o entendo, o hápax existencial se aproxima bastante do conceito de metanóia, a que já me referi em alguns textos anteriores. Uma grande diferença, porém, deve ser mencionada. Quase sempre, quando algum autor se refere a metanóia, faz tender a mudança sempre no sentido da espiritualidade. A metanóia, tal como é habitualmente tratada e entendida, desemboca, quase sempre, na idéia de conversão, sendo essa tomada na perspectiva religiosa.

Apolo Belvedere. Escultura de Leocarés, 300 a.C.

Apolo Belvedere. Escultura de Leocarés, 300 a.C.

No caso do hápax existencial, porém, tal como proposto por Michel Onfray, a mudança operada é de uma outra ordem. No livro do qual tirei o trecho que cito a guisa de epígrafe a este texto, o autor começa narrando um fato a que atribui o valor de hápax existencial, quando sofreu um enfarte. Escreve Onfray:

“A concentração da dor em um ponto de atordoante densidade abolira toda distância entre a dor e a consciência que pudesse apreendê-la. Uma estranha alquimia liquefazia a carne em energia ardente. Cada instante ameaçava uma pulverização que significaria o fim – que eu desejava. O médico diagnosticou um enfarte, eu ia fazer vinte e oito anos, e naquela segunda-feira, 30 de novembro, meu corpo experimentou uma sapiência que se transformaria em hedonismo” (p. 13).

Michel Onfray é um dos meus autores prediletos. Já li quase todos os seus livros traduzidos no Brasil. No momento me deleito com a leitura do volume dois de sua Contra-história da filosofia. Propositalmente inverti a ordem da leitura, começando pelo volume dois, deixando o um para ler a seguir. Incluí dois livros seus na minha prateleira de livros-talismã: “A arte de ter prazer” e “A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão”. Dos dois guardo citações que releio com frequência, pelas muitas reflexões que me têm provocado, geralmente com a consequente deflagração de excelentes insights, como essa, por exemplo: “Uma filosofia é a tentativa de dizer o que um corpo exige” (p. 78).

Para concluir, cito um trecho de uma entrevista concedida por Michel Onfray à Revista República, em outubro de 2001, que para mim – como bom leonino sempre dividido entre as, mais que contraditórias, complementares tendências apolíneas e dionisíacas -, faze um eco todo especial: “O real vive, não se pode tentar circunscrevê-lo com um método fixo, fechado, morto. Para mim, Dioniso prevalece sobre Apolo, o que não significa dizer que dispenso os serviços deste último”.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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