A instituição de confrarias religiosas, sob a égide da Igreja Católica, separava as etnias africanas. Os pretos de Angola formavam a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo, fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho. Os daomeanos (gêges) reuniam-se sob a devoção de Nosso Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos Homens Pretos, na Capela do Corpo Santo, na Cidade Baixa. Os nagôs, cuja maioria pertencia à nação Kêto, formavam duas irmandades: uma de mulheres, a de Nossa Senhora da Boa Morte; outra reservada aos homens, a de Nosso Senhor dos Martírios. Essa separação por etnias completava o que já havia esboçado a instituição dos batuques do século precedente e permitia aos escravos, libertos ou não, assim reagrupados, praticar juntos novamente, em locais situados fora das igrejas, o culto de seus deuses africanos.

Pierre Fatumbi Verger

[Verger, Pierre Fatumbi. Orixás – deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Tradução de Maria Aparecida da Nóbrega. – 6ª. ed. – Salvador: Corrupio, 2002, p. 28].

Um dos aspectos mais curiosos das religiões africanas trazidas para o Brasil pelos negros que para cá vieram como escravos é a interação que, ao longo dos anos, foi sendo estabelecida com a religião católica. O assunto tem sido objeto de estudos para diversos pesquisadores. Palavras como aculturação, inculturação e sincretismo têm sido com frequência utilizadas por estudiosos do assunto na tentativa de entender o que exatamente aconteceu com os deuses africanos que aqui receberam nova roupagem.

No belo livro de Pierre Fatumbi Verger, “Orixás – deuses iorubás na África e no Novo Mundo”, o autor nos dá uma possível pista ao informar sobre a

Iemanjá, sincretizada no Brasil com Nossa Senhora da Conceição

Iemanjá, sincretizada no Brasil com Nossa Senhora da Conceição

instituição de confrarias religiosas no Estado da Bahia, levada a efeito por representantes do catolicismo com o objetivo de delimitar alguns lugares de culto para os negros escravos. Todas as confrarias tinham por padroeiro um santo ou santa da Igreja Católica. Ainda hoje se podem encontrar pequenas igrejas que eram frequentadas exclusivamente por escravos. Entre essas sobressaem as dedicadas a Nossa Senhora do Rosário, uma das padroeiras mais comuns das confrarias.

Muitas hipóteses são aludidas para explicar as possíveis origens do que se convencionou chamar de sincretismo, que seria o amálgama entres os orixás africanos e os santos da Igreja Católica. Iemanjá, por exemplo, é identificada com Nossa Senhora. A hipótese mais comumente citada, mas nem sempre aceita por todos os pesquisadores, é a de que identificar os orixás com determinados santos foi uma forma que os africanos aqui instalados encontraram de burlar a proibição à celebração do culto às divindades de sua devoção. Fato digno de ser mencionado é que, à medida que foi havendo uma maior flexibilidade por parte das autoridades constituídas, os terreiros onde se realizam os rituais foram se popularizando e, paralelamente, imagens de santos católicos passaram a conviver lado a lado com os orixás. É o que se pode observar, com certa regularidade, nos locais em que é praticada a Umbanda. No caso do Candomblé, em que há um cuidado maior por parte dos praticantes para que as tradições originais sejam preservadas, apesar da eventual contaminação por elementos da cultura brasileira e católica, esta última tem bem menos influência.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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