Seleções_OutQuando comecei a ler histórias de verdade, as propriedades mágicas das palavras me pareceram ainda maiores. Às vezes, eu ficava segurando um livro com o braço estendido para ver de que é que ele era mesmo feito. Papel impresso dentro de uma capa! Como é que uma coisa tão simples conseguia encher minha cabeça e fazer disparar meu coração? Como é que, só com meus olhos lendo palavras, eu podia ver claramente coisas que nunca tinha visto antes? E ouvir uma banda militar quando no quarto só havia silêncio? (…) Maravilhada, certa de que a causa seriam artes mágicas, eu seguia o traçado das palavras e imaginava-me transportada de onde estava. Sentia um frêmito profundo de respeito e antecipação cada vez que abria um livro novo e passava a mão sobre a primeira página, preparando-me para começar. Por que essa certeza de satisfação? Nem todo livro era uma maravilha, é claro, e cheguei mesmo a ler um ou outro que não o eram de modo nenhum. Mas aquele ia ser! Havia de ser diferente de tudo quanto eu já lera, de qualquer modo, por alguma razão.

Joan Mills

[Mills, Joan. Esse objeto maravilhoso e encantador – o livro. Em: Seleções do Reader’s Digest. Tomo XIII, Nº 79, Dezembro de 1977, p.78-79].

O meu gosto pela leitura, que, com o passar do tempo, se tornaria uma paixão e, por fim, mais que paixão, uma necessidade, começou muito cedo, ainda na infância. Residindo em Massapê, pequena cidade do interior do Ceará onde não tínhamos uma livraria sequer e a única banca de revista que por lá foi instalada durou bem pouco tempo, os livros eram artigos de luxo cujo acesso não era fácil. Assim, apegava-me a toda mínima oportunidade que me fosse dada de acesso a esses objetos maravilhosos e encantadores que sempre me atraíram bem mais que qualquer brinquedo. Uma dessas oportunidades apareceu quando conheci Dona Edwiges Nogueira Borges.

Dona Edwiges residia num casarão de esquina, no início da Rua José Pontes, defronte à Praça Dermeval Carneiro. Foi no comércio do papai que a conheci, onde ela vez por outra fazia compras. Sabendo do meu interesse por leitura, certo dia levou uma edição da revista Seleções para me emprestar. Depois desse dia, minhas peregrinações ao casarão amarelo de portas verdes não pararam mais, até o dia em que, aos dezoito anos, me mudei para Fortaleza. Eu ia lá sempre por volta das 15 horas. Era quase certo encontrar Dona Edwiges conversando e fazendo crochê animadamente com Dona Anísia, de quem era amiga. Quando eu chegava para devolver uma revista, ela já tinha uma outra ou, quando não, um livro à minha espera. O processo era o seguinte: o Padre Moésio, seu irmão, residente em Sobral, comprava livros e revistas que, depois de lidos, eram remetidos para Dona Edwiges que, por sua vez, mos emprestava.

Foi assim, graças à sua bondade e desejo de incentivar um jovem leitor sem maiores condições de adquirir material bibliográfico, que fui iniciado no mundo dos livros e revistas. Algumas das revistas eu devolvia, outras, Dona Edwiges dizia que eu podia ficar para mim. Acho que eram aquelas sobre as quais eu fazia um comentário mais entusiasmado sobre um ou outro texto lido.

Foi graças à Dona Edwiges, também, que recebi um elogio que teve um sabor muito especial. Eu começara a estudar em Sobral, no Colégio Sant’Ana. Na segunda semana após o início das aulas, Dona Neném, nossa professora de português, nos deu alguns temas para redação. Um dos temas era, lembro-me bem, “O ruído e o stress”. Por coincidência, na semana anterior eu havia lido um texto sobre o assunto numa das revistas emprestadas por Dona Edwiges. Não tive dúvidas: escrevi sobre o stress e, sem vacilar, fiz uma citação do texto. Ao devolver as redações, todos foram entregues, menos a minha. Então Dona Neném pegou a folha e perguntou: “Quem é José Vasconcelos?” Depois que me identifquei, ouvi de Dona Neném a seguinte observação: “Meu filho, você escreve muito bem, e vejo também que você gosta de ler. Continue assim, pois você tem futuro”. Depois da aula, vários colegas vieram me cumprimentar. Retornei para Massapê radiante. Quando narrei o fato a Dona Edwiges, ela disse: “Pois fique com a revista para você”. Guardo-a, ainda hoje, como verdadeira relíquia, principalmente porque estão lá, no topo da capa, as duas letras com as quis Dona Edwiges identificava as suas revistas: “E.N.”, Edwiges Nogueira. Concluo com a citação de um texto de uma outra edição da Seleções (já mencionada na epígrafe), da qual gostei tanto que, também essa, me foi presenteada, trazendo na capa as duas mencionadas letras identificadoras:

“O hábito da leitura me veio tão naturalmente em minha infância como todas essas outras coisas – tão espontaneamente quanto o brincar de faz-de-conta ou o passar das estações. Lia na forquilha de uma macieira vergada, esperando que o filhote de tordo trincasse a casca de seu ovinho azul. Lia no sótão, ouvindo o cair da chuva, ou, lá fora, dentro de um velho caixote que tanto me servia de teatro, quanto caverna e castelo. (…) Dessa forma, tornei-me cedo uma leitora, e, desde então, nunca perdi o gosto pelos livros” (p. 79).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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