195341Antes de penetrarmos nos umbrais da análise, conviria historiarmos a formação da ave-maria. É composta de três partes: a primeira é tirada da saudação do anjo Gabriel: “Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco”(Lc 1,28); a segunda é tomada do louvor que Isabel faz a Maria: “bendita sois vós entre as mulheres e bendito o fruto de vosso ventre” (Lc 1,42); a terceira parte é uma invocação da Igreja, de origem bem posterior: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém”. Foi necessário um milênio, do século VI-XVI, para que se chegasse à fixação atual da ave-maria. Sua história, como de quase todas as grandes orações populares da Igreja, é cheia de ziguezagues, não se sabendo exatamente seus inícios. É semelhante à devoção a Maria: inicialmente se parece à insignificância de um pequeno córrego; lentamente vai se avolumando até terminar num caudal amazônico, expressão do grandioso sentido da fé.

Leonardo Boff

[Boff, Leonardo. A Ave-Maria: o feminino e o Espírito Santo. 9ª. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 18.]

No sábado passado comentei, neste blog, um livro sobre a história da Ave-Maria. Dando continuidade ao mesmo tema, quero abordar hoje um outro, que também trata do assunto sob uma perspectiva diferente. Refiro-me ao livro A Ave-Maria: o feminino e o Espírito Santo, do teólogo brasileiro Leonardo Boff. Embora também se refira a alguns aspectos históricos da Ave-Maria, importa ao autor, nesse livro, explorar especialmente a relação do feminino com o Espírito Santo ancorado na figura da Virgem Maria. Nesse caso, a oração da Ave-Maria serve como pretexto para a exploração da temática proposta.

Conforme o autor, “Há dois polos de acesso ao mistério santo e inefável, origem sem origem de tudo o que existe e pode existir de divino e criacional, que chamamos Pai: o Filho e o Espírito Santo. O que quer que podemos saber de Deus Pai que ‘habita numa luz inacessível’ (1 Tm 6,16) e ‘que ninguém jamais viu’(1Jo 4,12), o sabemos mediante a revelação do Filho e do Espírito Santo”(p. 19). O Filho se manifestou através da encarnação em Jesus de Nazaré. O Espírito Santo, por sua vez, se manifesta ao descer sobre Maria, convertendo-a na Mãe de Deus. “Pelo Espírito o feminino alcançou sua realização terminal”, afirma Boff, pois, “Atuando em Maria de maneira real e íntima fez com que ela fosse a Mãe de Deus”. Pela atuação do Espírito em Maria, o feminino é divinizado: “O feminino de Maria se faz assim parte do próprio mistério de Deus. Como o masculino em Jesus é divinizado pelo Filho, assim o feminino em Maria é divinizado pelo Espírito Santo” (p. 20).

Essa premissa leva o autor à conclusão de que Maria aparece como a mediadora por excelência, ao lado do Filho: “Maria exerce uma intercessão universal por sua própria realidade unida intimamente ao Espírito Santo. Ela é caminho e ao mesmo tempo ponto de chegada a Deus, porque o Espírito mora nela como em seu sacrário vivo. Em sua própria realidade humana de mulher, ela nos une a Deus. Diante de Maria, por efeito de sua assunção pelo Espírito Santo, encontramo-nos diante de uma última instância de consolo e salvação. Sua intercessão possui a eficácia de Deus. Ela é juntamente com Cristo a mediadora absoluta. O mistério insondável do Pai se nos mediatiza mediante Jesus e Maria que servem de suporte e receptáculo do Filho e respectivamente do Espírito Santo. Por eles nos vem Deus em seu mistério amoroso mais íntimo; por eles vamos ao coração do próprio Pai” (p. 112).    

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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