O silêncio em que me encontrava envolto enquanto meditava, na semiobscuridade da minha biblioteca, foi interrompido pelo soar das dez badaladas no relógio da igreja de Nossa Senhora de Fátima, próxima ao meu apartamento. Neste momento, uma brisa suave varreu o recinto, fazendo recender um agradável e discreto perfume de jasmim. Ao abrir os olhos, no lento despertar de minha meditação, fui tomado por intensa emoção e contentamento ao vislumbrar, bem à minha frente, a diáfana figura de um velho monge envergando seu inconfundível hábito beneditino.

Quanta alegria senti ao defrontar meu velho e querido mestre. Como esperei que ele se dignasse atender aos meus veementes apelos, esperando que me respondesse ao menos com um aceno de sua doce e confortadora presença. E agora, às dez horas desta manhã de terça-feira, eis que ele me aparece enchendo de júbilo minha existência. Ainda surpreso e tonto de tanta alegria, não cabendo em mim de contentamento, ergui-me do assento em que meditava e me curvei aos seus pés, beijando seu anel com o crucifixo de Cristo, o mesmo que eu tantas vezes beijara ao longo de muitos anos tempos atrás. Minha voz trêmula só me permitiu balbuciar duas palavras: “Dom Cristiano”[1].

Tomando-me as mãos, Dom Cristiano me ergueu do solo. Olhando-me nos olhos, ouvi de sua boca tudo o que um coração dilacerado como o meu precisava ouvir: “Meu filho, por que tanta aflição, não sabe que tenho estado velando por você durante todos estes anos? Da última vez em que nos vimos eu lhe dei esta garantia; no entanto, era necessário que, por algum tempo, você a esquecesse, até que fosse chegado o momento em que deveríamos nos encontrar mais uma vez. Agora chegou o esperado momento. Você não imagina o quanto eu também ansiei por isso. Estive com você em todas as ocasiões, acompanhando todo o desenrolar de sua luta consigo mesmo. Participei, sem que você o soubesse, de todas as suas angústias, de todas as dúvidas e questionamentos. Nos últimos dias, mais que nunca, tenho estado presente, sempre ao seu lado, embora você não se desse conta disso. Somente agora me revelo a você porque era necessário que você passasse por tudo o que passou. Você corajosamente enfrentou todos os dilemas que a fé pode colocar a um homem. Mesmo se achando tão fraco e incapaz, você não desistiu. De onde me encontrava, eu torcia por você, intercedendo ante o Grande Mestre para que lhe fosse concedida a força indispensável para não desistir. O último assalto nessa batalha cujo termo já antevejo aconteceu esta manhã, quando Artaban lhe falou do demônio meridiano. Mas você não se fez de rogado e, apesar das duras investidas de Artaban, não vacilou. Esteja tranquilo. Artaban e seu malfadado demônio meridiano ainda farão algumas breves investidas, mas não tema, pois você tem a garantia de que estarei sempre ao seu lado assistindo-o em sua luta interior”.

Quando eu quis falar, Dom Cristiano levou os dois dedos à minha boca como a me silenciar. Ato contínuo, estendeu-me a mão para que beijasse o anel que, em suas conversas comigo em tempos de antanho, ele sempre denominava “a aliança de Cristo”. Uma brisa suave o levou de minha presença, deixando-me imerso numa suave sensação de paz, aquela paz que somente Ele nos pode dar. 

 


[1] Dom Cristiano Yepes, monge copista beneditino, nascido e falecido em Aranjuez, Espanha, 1261-1373.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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