Mas esse sentimento religioso que apresenta, no norte, um caráter mais místico, mais ligado ao dogma, ou inclinado às superstições e ao fanatismo, nas camadas populares e nos sertões, tomou, em geral, uma direção diferente, mais formalista,  Boutmy (Élements d´une psychologie politique du peuple américain – La Nation, la patrie, l´Êtat, la religion. Paris, Armand Colin, 1902), na sua penetrante análise da psicologia do povo americano, a religião, no Brasil, não assumiu essa feição essencialmente ética e prática que lhe imprimiram, naquele país, de um lado, a severidade ascética e a rigidez de costumes dos puritanos, seus primeiros colonos, e, de outro, a mobilidade e a atividade intensa na obra de colonização. É em todo sistema de vida colonial, escreve Gilberto Freyre, “uma religião doce, doméstica, de relações quase de famílias entre os santos e os homens, que, – das capelas patriarcais das casas-grandes, dos templos sempre em festas, batizados, casamentos, festas de bandeira de santos, crismas, novenas -, presidiu ao desenvolvimento social do Brasil. Essa religião “doméstica, lírica e festiva, de santos compadres, de santas comadres dos homens, de Nossa Senhora madrinha dos meninos”, essa confraternização de valores e de sentimentos, da terra e dos céus, não se teria realizado aqui se, como diz Gilberto Freyre, tivesse dominado a nossa formação social outro tipo de cristianismo, “um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo, calvinista ou rigidamente católico”. A tendência do brasileiro para a dissolução de todas as hierarquias sociais atingiu, modificando-o e enriquecendo-o de ingenuidade e de espontaneidade, o sentimento religioso, com essa aproximação, quase convívio com os deuses que pareciam, como na idade grega, andar sobre a terra, mais humanizados, na intimidade doméstica dos crentes.imigrantes novos. Ao contrário, porém, dos Estados Unidos em que o sentimento religioso não parece prender-se demais ao dogma nem lançar-se aos sonhos místicos, e o clero se ocupou sobretudo de “desenrijar e desanuviar a teologia”, para lhe reter tudo o que impele à ação, como observaconcentrando-se nas cerimônias, nas práticas e nos ritos religiosos. A religião desenvolve-se livremente, dobrando-se aqui, como por toda parte, às necessidades próprias dessa sociedade nova, de senhores de engenho, sertanejos e pioneiros, e portanto ao gênero de vida que a exploração de um imenso território impõe aos descendentes dos primeiros imigrantes e dos

Fernando de Azevedo

[Azevedo, Fernando de. A cultura brasileira: Introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4ª. ed. Revista e ampliada. Editora Universidade de Brasília, 1963, p. 211.]   

Tendo em vista o fato de que este blog é dedicado especialmente à temática religiosa, e considerando que hoje se comemora o dia em que o Brasil se tornou uma nação independente, me ocorreu dedicar umas linhas a algumas breves reflexões sobre a religiosidade do nosso povo. Serviu-me de inspiração um trecho do livro de Fernando de Azevedo dedicado ao estudo da cultura brasileira e, no qual, valendo-se de algumas observações de um outro estudioso da nossa brasilidade, Gilberto Freyre, tece alguns comentários sobre o assunto.

Ambos os autores citados se referem à nossa religiosidade como tendo por característica fundamental o trato com o divino numa relação de absoluta intimidade, de compadrio mesmo, como diz Gilberto Freyre. O estilo brasileiro de ser religioso tem sido durante muito tempo objeto de minhas reflexões. Uma vez que a religião ocupa papel preponderante e central na minha vida, sendo mesmo fator norteador da minha conduta e do meu viver, essa é uma questão à qual atribuo grande importância, pois, como brasileiro, sou condicionado na minha prática religiosa por fatores culturais que, em parte, determinam o meu estilo de ser religioso.

A religião, enquanto instituição, sofre grande influência da cultura na qual está inserida. Embora seu objeto e fundamento sejam de natureza transcendente, o que lhe confere um caráter de universalidade, nem por isso pode ser diminuído o condicionamento cultural que determina, sobremaneira, as formas e estilos adotados  pelos indivíduos para se aproximar do sagrado. Quanto a isso, vejo a religiosidade brasileira como uma das mais peculiares. Essa dimensão da intimidade no trato com o divino é, de fato, uma característica muito própria do jeito brasileiro de ser. Mas, se esse aspecto pode ser tido como um traço favorável, à medida em que, digamos, torna mais simples o acesso ao sagrado, por outro lado, me preocupa o perigo que se incorre de banalizar o sagrado e torná-lo não mais que um vassalo, ao qual sempre se pode recorrer, agindo com base no pressuposto de que os santos estão ao nosso inteiro dispor para atender sejam quais forem as demandas. Proceder assim é incorrer numa forma superficial de religiosidade, própria de uma mentalidade espiritual um tanto pueril. Esse risco, portanto, não deve ser olvidado por quem pretende realizar um projeto de espiritualidade profunda e comprometida.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles