Dom Laurence Freeman

O “aguilhão na carne” de Paulo permanece parte de seu mistério pessoal. Tratava-se de um impedimento físico ou até moral? São as imperfeições humanas desses heróis da fé, como a fraqueza sexual de Martin Luther King ou a longa luta de Mahatma Gandhi consigo mesmo, que podem torná-los ainda mais convincentes e confiáveis. Com eles aprendemos que a conversão não diz respeito à perfeição. Diz respeito à descoberta de nossa bondade humana essencial e da confiança de que, apesar de nossas fraquezas e falhas, somos aceitáveis, e até louváveis, diante de Deus. Então, por que não de nós mesmos? Ela é o começo da cura do ódio por si mesmo. Por meio da aceitação de si, a conversão deve, por fim, completar toda a pessoa, intelectual, moral, religiosa e emocionalmente. Trata-se de um processo de mudança, por vezes drástico e imediato, por vezes gradual e mundano.

Laurence Freeman
 
[Freeman, Laurence. Jesus, o mestre interior. Tradução Valter Lellis Siqueira; revisão da tradução Marina Appenzeller; revisão técnica Dom Anselmo Nemoyane. – São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 205.]  

 

A conversão é uma questão que tem ocupado boa parte das minhas reflexões nos últimos anos. Tenho me perguntado muitas vezes o que é, exatamente, a conversão. A pergunta não se presta a respostas fáceis e simples. Em minhas pesquisas a propósito do assunto, um dos autores que me proporcionou, até o momento, um dos melhores insights foi Dom Laurence Freeman, monge beneditino que tem se dedicado à prática e divulgação da meditação cristã, mestre por quem tenho um imenso carinho e admiração.

Durante muito tempo confundi conversão com perfeição, tomando, inclusive, uma palavra pela outra. Para mim o convertido tinha que ser, necessariamente, uma pessoa perfeita. Somente quando li Jesus, o mestre interior, o belíssimo e tão sábio livro de Dom Laurence, foi que percebi que estava equivocado.

Na verdade, conversão talvez não implique exatamente em perfeição, mas em inteireza. O convertido seria, nesse sentido, um ser que se tornou íntegro e, portanto, completo. Equivocadamente, porém, às vezes pensamos que, para nos convertermos, temos que eliminar partes nossas que, por representarem o nosso lado mais obscuro, nos negamos a aceitar. Preferimos então, em nome de uma suposta perfeição, amputá-las ou negá-las. Ora, na verdade, quem assim procede está apenas aumentando o  seu nível de imperfeição e, portanto, tornando mais distante a possibilidade de conversão.

Para abordar o assunto, Dom Laurence se vale de uma passagem de São Paulo que elegi há muito tempo como uma das mais belas passagens bíblicas. Se eu tivesse que elencar apenas dez episódios que eu considerasse os mais marcantes de toda Bíblia, este seria um dos primeiros a serem apontados, sem sombra de dúvida. Refiro-me à segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 12, versículos 7 a 10. Neste trecho, encontra-se também um dos mistérios ainda insolúveis da vida paulina, o conhecido “aguilhão na carne”, que muita tinta já fez jorrar da pena de exegetas na vã tentativa de elucidá-lo. Eis o que escreveu o apóstolo dos gentios:  

Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado

São Paulo

 um aguilhão na carne – um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte.

A última frase oferece um dos mais encantadores paradoxos que a literatura cristã nos legou. Tomando como referência as ponderações de Dom Laurence Freeman, amparadas nas palavras de Paulo, talvez possamos concluir que somente aceitando – e, mais que isso, integrando – o que de mais fraco e reles existe em nós, possamos, então, falar em autêntica conversão.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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