Tupã Tenondé apresenta-se como colibri, a grande expressão do sagrado para o povo Guarani, pois é uma das suas primeiras formas de manifestação – o que vê a totalidade a partir dos mundos sutis do espírito. Ainda hoje é sob essa forma ágil que se apresenta um mensageiro divino – aquele que vem da morada de Tupã – quando quer transmitir uma orientação espiritual importante, ou um sinal de proteção, de presença, de indício de caminho correto.

Kaka Werá Jecupé

[Kaka Werá Jecupé. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001, p. 35.]

Ontem à noite senti saudade, muita saudade. Estava relendo trechos do belo livro do índio Kaka Werá Jecupé quando, de repente, comecei a lembrar de um outro livro que eu lera quando fazia a quarta série primária e ainda residia em Massapê, “As aventuras de Tibicuera”, de Érico Veríssimo. Bateu uma saudade enorme. Comecei a relembrar minha infância, repassando pela mente momentos felizes e inesquecíveis da época em que me fiz companheiro do índio Tibicuera em sua fascinante aventura como protagonista dos mais diversos momentos da História do Brasil. Como sei que Naza é uma apaixonada por Érico Veríssimo, levantei da cadeira e fui à sala perguntar se ela tinha lido as Aventuras… Tinha, claro! “Li quando eu era criança”, disse. E aí começamos a tentar trazer à memória episódios do livro. Vou parar por aqui, pois não era meu objetivo falar de Tibicuera neste texto, deixarei para fazer isso num outro. Fico devendo a mim e aos leitores deste blog um post sobre o aventureiro que recebeu do pajé de sua tribo o segredo da imortalidade.

Comecei a escrever este texto, na verdade, objetivando falar de um livro maravilhoso intitulado “Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani”. Esse livro resultou de uma coletânea de ensinamentos sagrados da tradição Tupi-Guarani, trabalho levado a efeito pelo índio Kaka Werá Jecupé. Embora não sendo oriundo dos Tupi-Guaranis, Kaká Werá Jecupé foi batizado entre eles. A propósito, afirma, na apresentação que faz de si mesmo no início do livro:

“Não nasci Guarani, tornei-me. Minha família veio de um clã Tapuia de auto-estima cultural destroçada e valores fragmentados.

Kaka Werá Jecupé

Nasci em São Paulo, na borda das últimas matas da zona sul, ao lado de uma aldeia Guarani. Meus pais queriam que eu sobrevivesse, e naquela altura isso significava comer da cultura ´branca` correndo o risco de sacrificar a ´vermelha´. O tempo e a Mãe Terra me nomearam Guarani – fiquei sendo Werá Jecupé – por meio do cacique Guyrá Pepó na aldeia Morro da Saudade. Ali aprendi ´as nossas palavras formosas´ com o meu padrinho, Alcebíades Werá, pajé centenário” (p. 13).

No livro aqui mencionado, o autor transcreve, no dialeto indígena original, diversos ensinamentos sagrados oriundos da tradição oral Tupi-Guarani, traduzindo-os a seguir e tecendo alguns comentários. Um dos mais belos trechos do livro é, sem dúvida, o que faz referência ao colibri, uma das manifestações de Tupã Tenondé, o Grande Som Primeiro: “Yvára apyre katu/ Jeguaka poty/ ychapy recha./ Yvára jeguaka poty mbyte rupi/ guyra yma, Maino i,/ oveve oikovi”. Tradução do autor: “Da divina coroa irradiada/ flores plumas adornadas/ em leque./ Em meio às flores plumas floresce/ a coroa-pássaro/ do pássaro futuro,/ luz veloz/ que paira/ em flor e beijo,/ que voa não voando” (p. 27).

Há muitos anos Kaka Werá Jecupé vem se dedicando à difusão das tradições sagradas dos povos indígenas brasileiros através do Instituto Arapoty, do qual é o fundador. É também professor da UNIPAZ e da Fundação Peirópolis. Trabalha, ainda, como terapeuta, mister no qual faz uso das tradições próprias da medicina indígena, como danças e uso de plantas medicinais. Viajou e proferiu palestras em diversos países, entre eles Estados Unidos, Israel, México, Inglaterra, Índia, Escócia e França, sempre difundindo as mensagens de sabedoria e valores éticos dos povos indígenas brasileiros.

No final do livro, escreve o autor, a propósito da degradação por que passaram os Guarani, palavras que se aplicam, certamente, também a outros povos indígenas brasileiros: “A degeneração social dos Guarani deve-se à escravidão e às guerras que se sucederam nos primeiros trezentos anos de conquista. A imposição de uma religiosidade em detrimento da religiosidade nativa também afetou profundamente o ritmo cultural Guarani. Após esse período, em que os escravos Guarani foram substituídos pelos negros da África, surgiu o desequilíbrio ecológico, que continuou causando a esse povo consequências desastrosas do ponto de vista social e interferindo negativamente na sua cultura” (p. 102).

Apesar disso, conclui Kaka Werá Jecupé: “Entretanto, mesmo com as transformações por que os Guarani vêm passando, notadamente ao longo dos últimos cinco séculos, os seus valores sagrados – sustentados por sua cosmovisão – continuam fazendo parte da sua vida. Os cantos (porã-hei), a dança (jeroky), os nomes dos clãs e dos indivíduos, por exemplo, estão profundamente interligados à visão ancestral de mundo, fazendo do cotidiano de uma aldeia uma tradição sagrada” (p. 103).

Que outras vozes como a de Kaka Werá Jecupé se façam ouvir, com outras tantas publicações que ajudem a preservar o que ainda resta das sagradas tradições ancestrais  de nossos povos indígenas. Segue, abaixo, o endereço do site do Instituto Arapoty:

http://institutoarapoty.ning.com/

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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