Peregrinação é o tipo de jornada que estabelece a diferença entre o atento e o negligente, entre o banal e o inspirado. Essa diferença pode ser sutil ou dramática; por definição, ela é fundamental. Significa estar alerta para a ocasião, em que tudo o que se faz necessário numa viagem a um lugar remoto é tão-somente deixar-se perder a si próprio, e estar atento à ocasião, em que tudo o que é preciso é uma jornada a um lugar sagrado, com todos os seus aspectos gloriosos e temíveis para o encontro consigo mesmo. Desde o mais remoto peregrino humano, a pergunta mais desafiadora tem sido: como viajar de modo mais sábio, mais frutífero e mais nobre? Como podemos mobilizar a imaginação e animar nosso coração de forma que possamos, em nossas jornadas especiais, “ver em toda a parte do mundo a inevitável expressão do conceito de infinito”, nas palavras de Louis Pasteur; ou perceber, com Thoreau, “a divina energia em toda a parte?” Ou lembrando, como Evan Connell, de advertir os viajantes medievais: “Passe ao largo daquilo que não ama”.

Phil Cosineau

[Cousineau, Phil. A arte da peregrinação: para o viajante em busca do que lhe é sagrado. Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Ágora, 1999, p. 23]

Sempre tive fascínio por peregrinações. A primeira, realizei-a ainda adolescente, quando meu pai foi com nossa família a Canindé. Ali tive a primeira oportunidade de estar entre peregrinos, pois ficamos hospedados no abrigo dos romeiros. Alguns anos depois, em 1982, peregrinei a Aparecida (SP), onde se encontra o santuário dedicado à padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Mais tarde, resolvi ousar um pouco mais, e peregrinei à Índia e ao Nepal, quando estive em santuários hinduístas, budistas e islâmicos. Na sequência, peregrinei a Juazeiro do Norte. Esse foi um dos momentos mais especiais da minha história de peregrino, devido ao contato que tive com os romeiros. Na ocasião, fiz, a pé, um percurso pouco usado pelos romeiros, ao longo do qual fui conduzido por duas crianças, que me proporcionaram a maravilhosa experiência de ouvir algumas míticas e místicas histórias que só seriam possíveis acontecer na “Terra do Padim Ciço”. Essas histórias estão relatadas num Diário, inclusive com fotografias dos meus pequenos guias.

Depois de Juazeiro, dei um voo mais alto e realizei a peregrinação que permanecia como um dos meus objetivos mais ousados: o Tibet. Eu e mais três brasileiros fizemos um percurso de 950 quilômetros ao longo da cordilheira do Himalaia, conduzidos por um motorista e um guia tibetanos. Dessa peregrinação resultou o livro “Viagem mística no Tibete”, publicado pela Editora DPL, de São Paulo. Em 2008, peregrinei a Fátima (Portugal), Assis e Roma (Itália), e à Terra Santa (Israel). Por último, em novembro deste ano, retornei a Canindé para uma conversinha com meu padrinho, pois andava muito necessitado de seu auxílio.

Atribuo um valor inestimável à peregrinação. Creio que quando entramos de corpo e alma em nossa jornada interior, começamos a desvelar alguns sinais que o universo nos vai proporcionando, os quais fazem as vezes de mapas que vão nos indicando o itinerário a seguir. Ontem escrevi neste blog um texto em que afirmava que tenho a oração como um dos mapas mais seguros para quem se aventura na jornada da alma. Ocorre que a oração é um dos mecanismos que nos permitem a indispensável interiorização para que possamos acessar o grande sábio que jaz em nosso interior, aguardando apenas ser chamado para que possa nos orientar.  Essa orientação acontece sob a forma de sinais, às vezes muito sutis, o que demanda de nossa parte que estejamos suficientemente centrados para que possamos percebê-los e usá-los a nosso favor.

Quando a jornada da alma tem início, o que acontece em nosso interior vai sendo projetado no exterior, e, por sua vez, os acontecimentos externos fazem ecoar o que acontece em nossa intimidade. Entram em cena, nesse momento, as simbolizações da nossa jornada. O que estou querendo dizer é que uma peregrinação que se realiza tendo como meta um lugar sagrado é a exteriorização da jornada interior. Quem caminha em direção a um templo, santuário ou montanha sagrada, caminha em direção a si mesmo. O almejado encontro com o sagrado, supostamente ancorado no lugar para o qual nos encaminhamos em nossa peregrinação é, em última instância, o encontro consigo mesmo, pois esse sagrado que buscamos fora, na verdade sempre esteve em nosso interior. A função da peregrinação é auxiliar no despertar desse sagrado que trazemos na profundeza de nossa alma.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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