Embora não haja consenso sobre a questão de sua origem, se a alquimia surgiu primeiro na China ou no Egito do período helenístico, não há dúvida de que, no mundo ocidental, sua tradição remonta a este último local e época e que o grego foi a primeira língua em que os textos alquímicos foram elaborados. Assim, é curioso que, desde seu início, a alquimia helenística estivesse imbuída da crença de que devia sua origem a uma ciência sagrada e secreta de tradição judaica, ou hebraica. Uma das formas assumidas por essa crença, mas sem nenhuma comprovação histórica, era a criação de uma pré-história bíblica e mítica para a alquimia; uma outra era a frequentemente proclamada, mas historicamente não comprovada, afirmação de que os judeus eram os únicos que estavam na posse de um verdadeiro conhecimento alquímico.

Por outro lado, existe comprovação histórica de que, em meio aos alquimistas do período helenístico, havia vários adeptos judeus, um dos quais Maria, a Judia, considerada por eles como a fundadora de sua arte. Zózimo e outros constantemente se referem a Maria como a autoridade suprema, tanto em termos da teoria quanto da prática da alquimia, e seus ensinamentos, em muitos casos na forma de concisos aforismos, são citados como se fossem pronunciamentos proféticos.

Raphael Patai

[Patai, Raphael. Os alquimistas judeus: um livro de história e fontes. Tradução Maria Clara Cescato e Diana Souza Pereira. – São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 99. – (Perspectivas / direção J. Guinsburg)]

Conforme afirma Raphael Patai, “Os estudiosos que escrevem sobre a alquimia estão longe de concordar sobre o que ela realmente é (ou era)” (p. 27). Para alguns, ela seria apenas a tentativa de transformar metais em outro. Para outros, porém, entre os quais sobressai o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, a alquimia seria uma metáfora para a busca mais profunda do indivíduo. Nessa perspectiva, ela teria uma conotação verdadeiramente espiritual.

Ao longo dos séculos muita coisa tem sido escrita sobre a alquimia, tanto no Ocidente quanto no Oriente. O assunto, porém, parece inesgotável, dotado que é de forte apelo à curiosidade humana, tendo em vista o mistério em que muitas de suas práticas estão envoltas. Para os interessados pelo assunto, entre os quais me incluo, merece especial menção a publicação em língua portuguesa, há pouco mais de um ano, de uma obra grandiosa escrita pelo erudito judeu Rapahel Patai, Os alquimistas judeus.

Raphael Patai

Raphael Patai (1910-1996) nasceu em Budapeste, na Hungria, filho de um proeminente erudito, editor e militante sionista. Estudou em seminários rabínicos na Universidade de Budapeste e Breslaw, doutorando-se em 1933 em línguas semíticas e história oriental. Estabeleceu-se na Palestina e realizou novo doutorado em 1936 em paleontologia. Lecionou na Universidade Hebraica de Jerusalém e no Technion de Haifa. Em 1944, fundou o Instituto de Folclore e Etnologia da Palestina. Realizou importantes estudos sobre judeus no Mèxico e, em 1952, fixou-se nos Estados Unidos onde lecionou em diversas universidades. Publicou diversas obras.

Nesta que é sua primeira obra traduzida no Brasil, o autor oferece um estudo vastíssimo sobre as raízes judaicas da alquimia. Ao longo de suas 868 páginas, a obra cobre um período que vai do primeiro século antes de Cristo ao século XIX de nossa era. A alquimia judaica guarda uma peculiaridade em relação à que foi praticada em outros países especialmente pelo fato de estar diretamente imbricada com elementos de natureza religiosa. Assim, afirma Raphael Patai:

“Os alquimistas judeus, que como praticamente todos os judeus até o século XIX praticavam a observância religiosa, viam na alquimia uma dádiva concedida por Deus e, assim, consideravam a prática da alquimia uma atividade religiosa que agradava a Deus. Como corolário dessa atitude, alguns alquimistas judeus sentiam que suas realizações na Grande Arte não deviam ir além dos limites do povo judeu – uma das primeiras representantes dessa postura, como vimos, foi Maria, a Judia. Outros, embora não chegando a esse ponto, estavam convencidos de que os judeus, sendo herdeiros de uma tradição cultural e religiosa ancestral – da qual a alquimia era uma parte e que incluía a familiaridade com a língua hebraica, a Bíblia e sua exegese, os preceitos orais e rituais judaicos e, a partir da Idade Média tardia, também a Cabala – , estavam muito mais bem equipados para se tornar mestres alquimistas que os gentios, que não dispunham dessa base essencial” (p. 810).

Essa forma de encarar a alquimia judaica teria levado diversos ocidentais a procurar os praticantes judeus na esperança de ser por eles iniciados na arte da alquimia, conforme conclui o autor: “…dessa visão compartilhavam muitos alquimistas gentios, que estavam, dessa forma, dispostos a aprender o hebraico, estudar a Bíblia e investigar os mistérios da Cabala e da guemátria, assim como a procurar mentores judeus com os quais pudessem alcançar os verdadeiros e plenos padrões do domínio da alquimia” (p. 811)

Os Alquimistas Judeus é um daqueles livros que deve figurar entre as raridades na biblioteca de qualquer amante das artes ocultas. É, igualmente, uma obra eivada de textos que proporcionará aos amantes do ocultismo indizível prazer.  Um que eu destacaria está citado no capítulo dedicado ao alquimista judeu Abraão Eleazar. O texto é atribuído por Eleazar a um certo Samuel Baruc que, ao que parece, é, na verdade, uma figura fictícia criada pelo primeiro. Transcrevo para os leitores um trecho,  à guisa de conclusão:

“(…) Mantenham escondidas essas maravilhas que Adão trouxe do Paraíso para consolo de seus descendentes, seus irmãos que são seus semelhantes. Por conseguinte, busquem na escuridão sem ser vistos, na quietude. Quando o tiverem encontrado,  não desamparem seus irmãos que estão presos na necessidade, porque vocês devem ser um consolo para eles. Temam o Criador no grande ???? Adonai, permaneçam puros  e com suas almas castas, então vocês serão iguais à substância (Wesen) dessas coisas, interiores, sagradas e maravilhosas, e da vida, do grande mundo, para que vocês realizem milagres, atravessem os rios a pé, atravessem montanhas e governem a luz do grande mundo. Sim, para que a terra se abale diante de vocês e as pedras tremam e caiam; porque o Senhor está com vocês. Levantem-se. E sejam sábios e amem a ??????? [Torá] e estejam [entre aqueles] qui ingrediuntur & operantur iustititam [que entram em ação e servem à justiça sem máculas]” (p. 419).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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