A crítica literária, por muito tempo tida como periférica ou mesmo irrelevante aos estudos bíblicos, emergiu desde meados da década de 1970 como um novo foco importante de estudos bíblicos acadêmicos na América do Norte, Inglaterra e Israel, e tem mostrado alguns sinais notáveis na Europa. É natural, portanto, que nosso empreendimento deva ser internacional. Nosso colaboradores vêm de cátedras de ensino (com duas exceções, de universidades seculares) nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Israel, Itália e Holanda. Alguns estão envolvidos, pela fé, com os textos que estudam, ao passo que outros se veriam essencialmente como críticos seculares. Mas falam uma linguagem crítica comum, pois as diferenças entre eles derivam muito mais da sensibilidade individual e da preferência intelectual, do que de antecedentes religiosos. Em muitos casos, procuramos recrutar escritores que já tivessem dado alguma contribuição notável a este campo de pesquisa, mas não hesitamos em recorrer também a vários estudiosos mais jovens cujo trabalho inicial nos pareceu bastante promissor. O volume, então, é um ponto de encontro não apenas de nacionalidades e credos, mas também de gerações acadêmicas. A variedade de perspectivas resultante, juntamente com a unidade de propósito geral proporcionam um panorama vívido de mais de mil anos de atividade literária diversa representada na Bíblia.

Robert Alter e Frank Kermode

[Alter, Robert e Kermode, Frank (Organizadores). Guia Literário da Bíblia. Tradução Raul Fiker; revisão de tradução Gilson César Cardoso de Souza. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 16. – (Prismas)]

Seguramente nenhum outro livro na história da humanidade foi  tão lido, discutido, estudado ou criticado quanto a Bíblia. A Bíblia se converteu, por isso, em motivo para que milhares de outros livros fossem escritos desde o advento da imprensa. A propósito, vale salientar que o primeiro livro a vir a lume quando da invenção da imprensa por Gutemberg foi, exatamente, um exemplar da Bíblia. Tal profusão de obras tratando da Escritura sagrada ancora-se no fato de que sua abordagem pode se dar sob ângulos muito diversos e até díspares.

A propósito de tais publicações, gostaria de mencionar aqui um livro maravilhoso que tem por objeto uma análise da Bíblia sob o ponto de vista literário. Trata-se do Guia Literário da Bíblia, organizado por dois estudiosos, Robert Alter e Frank Kermode.  Escrito por  diversos autores de seis diferentes nacionalidades, o livro compreende um total de quarenta textos, incluindo uma Introdução geral, uma Introdução ao Antigo Testamento e uma ao Novo Testamento. No final traz, ainda, um glossário de termos bíblicos e literários.

Vista sob a perspectiva da crítica literária, o que primeiro salta aos olhos, em se tratando da Bíblia, é a diversidade de gêneros e estilos que a perpassam. Isso é evidenciado no texto escrito por Robert Alter , Introdução ao Antigo Testamento, onde afirma:

Qualquer explicação literária da Bíblia hebraica deve reconhecer sua qualidade de extrema heterogeneidade, uma condição que os ensaios deste volume vivamente confirmarão. De um certo ponto de vista, não é sequer uma coleção unificada, mas sim uma antologia solta que reflete cerca de nove séculos de atividade literária hebraica, desde a Canção de Débora e outros poemas arcaicos mais breves inseridos nas narrativas em prosa até o Livro de Daniel (século II a. C.). A variedade genérica dessa antologia é de qualquer modo notável, englobando historiografia, narrativas ficcionais e muita mistura de ambos, listas de leis, profecias tanto em verso quanto em prosa, obras aforísticas e de meditação, poemas de culto e devoção, hinos de lamentação e vitória, poemas de amor, tábuas genealógicas, contos etiológicos e muito mais (p. 14)

A importância de um estudo literário da Bíblia é evidenciado no texto de autoria de Helen Elsom intitulado O Novo Testamento e a escrita greco-romana, no qual a autora salienta o quanto o estilo literário e a língua em que foi divulgada a Bíblia nos primórdios do cristianismo contribuiu para que este se firmasse como religião dominante:

O Novo Testamento está escrito em grego e é dirigido – explicitamente nas dedicatórias de Lucas e nas Epístolas – a um público que vive no mundo oriental, de língua grega, do Império Romano. As expectativas de seus possíveis leitores, que devemos entender quando lemos o texto, são influenciadas por esse fato. A língua grega, com sua tradição literária e filosófica, era parte da cultura “oficial” do império, no qual se esperava dos administradores que tivessem ao menos um conhecimento superficial de língua e literatura gregas. Ademais, embora o Novo Testamento seja uma reelaboração da Escritura judaica, o texto concreto a que ele alude é a versão dos Setenta, que já havia iniciado o processo de reescrever as Escrituras para o mundo helenístico. A história ulterior do cristianismo sugere que ele foi ajudado em seu caminho para tornar-se a religião dominante pelo fato de seus textos sagrados serem escritos em grego e em formas literárias que, se não propriamente gregas, podiam ser compreendidas em termos gregos, populares bem como eruditos (p. 601).

O Guia Literário da Bíblia pode seguramente ser indicado como uma obra cujos textos devem ser lidos como introdução e preparação à leitura de cada um dos livros que compõem a Bíblia. Para concluir, transcrevo um trecho do texto da Introdução geral, em que os organizadores da obra justificam a abordagem da Bíblia do ponto de vista da crítica literária:

Se nos fosse pedido para enunciar mais positivamente por que abordamos o assunto da maneira que o fizemos, nossa resposta seria a seguinte. Em primeiro lugar, a Bíblia, considerada como um livro, atinge seus efeitos por meios que não são diferentes dos geralmente empregados pela linguagem escrita. Isso é verdade quaisquer que sejam nossas razões para atribuir valor a ela – como o relato da ação de Deus na história, como o texto fundador de uma religião ou religiões, como um guia para a ética, como evidências sobre povos e sociedades no passado remoto e assim por diante. De fato, a análise literária deve vir primeiro, pois, a menos que tenhamos um entendimento claro do que o texto está fazendo e dizendo, ele não terá muito valor sobre outros aspectos. Tem-se dito que a melhor razão para o estudo sério da Bíblia – para aprender como lê-la bem – está escrita ao longo da história da cultura ocirdental: que se veja o que ocorre quando as pessoas a leem equivocadamente, a leem mal ou a leem com falsas suposições (p. 12)

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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