Muitos buscam nas palavras religiosas, bíblicas ou não, o seu norte. Outros preferem provar que a psicanálise é uma ciência e assim sentir-se seguros com ela. Talvez todos possam sentir-se com a verdade, cada um de sua forma, cada um com sua ilusão, como escreveu Calderon de La Barca: a vida é um sonho.

Abrão Slavutzky

[Slavutzky, Abrão. A ilusão tem futuro. Em: Wondracek, Karin Heller Kepler (organizadora). O futuro e a ilusão: um embate com Freud sobre psicanálise e religião. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, Cap. 5, p. 118.]

Quando se tenta seguir um itinerário espiritual, é inevitável que ao longo do trajeto algumas questões nos sejam colocadas. Queiramos ou não, mais cedo ou mais tarde elas aparecerão, às vezes com uma força inexorável. Varrê-las para debaixo do tapete, ou seja, fingir que não existem é a pior alternativa. Quem assim procede está agindo como a avestruz que, ante a iminência do perigo, enfia a cabeça no primeiro buraco que encontra, como se isso resolvesse o problema. Uma questão, porém, que se nos apresenta ao longo do percurso, da nossa trajetória, deve ser enfrentada, e enfrentada com coragem. Assim é porque assim deve ser, sob pena de travarmos o caminho ou, na hipótese de seguirmos, fazê-lo de forma superficial.

No meu embate com as questões de fé que a minha prática espiritual e religiosa me tem colocado, muitas vezes me vi tentado a desistir. Tenho uma formação em que fui bastante influenciado pela perspectiva psicanalítica. Para mim Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, foi inquestionavelmente um gênio. E Freud, como se sabe, é tido como um ferrenho contestador da religião. Um dos seus textos mais conhecidos, “O futuro de uma ilusão”, não deixa dúvidas quanto ao seu ponto de vista. Dizendo de forma muito resumida, na perspectiva do médico vienense a religião seria não mais que uma neurose coletiva.

Sem descurar do que há de verdade na postulação freudiana, e ao mesmo tempo sem abrir mão da espiritualidade – para mim muito cara, posto que tenha dela uma necessidade visceral -, tenho procurado encontrar as possíveis interações, ou, melhor dizendo, a possibilidade de conciliar uma e outra, ou seja, psicanálise e religião. Não posso abrir mão da minha análise; tampouco poderia abandonar o anseio por uma prática espiritual por considerar tudo o que diz respeito à religião como consequência de uma estrutura supostamente neurótica.

Assim, onde está o ponto de equilíbrio entre uma e outra? Será que sustentar uma análise implica, necessariamente, em abrir mão da espiritualidade?

Inclino-me a pensar que não. Talvez em algum ponto ambas se encontrem. Talvez ambas, psicanálise e religião, estejam em parte certas e, em parte, equivocadas. Na grande aventura da vida, nunca se pode ter cem por cento de certeza. A ciência muitas  vezes arroga a si o domínio da verdade, o mesmo valendo para a religião. Sem entrar aqui na controvertida questão da cientificidade da psicanálise, gostaria apenas de lembrar que um de seus pilares é o sonho, de onde partiu Freud, sendo “A interpretação dos sonhos” o texto fundador da psicanálise, embora o autor tenha publicado antes outros escritos.  

Na religião, o sonho também desempenha um papel importante, basta ver a quantidade de fatos motivados por sonhos sobejamente presentes na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Conforme o hinduísmo e o budismo, a vida não passa de maya, ilusão, ou seja, a suposta realidade do dia a dia é, na verdade, um grande sonho que sonhamos acordados.

Assim sendo, muito mais que querer saber se a psicanálise ou a religião é ou não uma ilusão, ou se ambas o são, o melhor mesmo é aceitar a vida como uma grande ilusão que inclui todas as demais pequenas ilusões, e fazer dessa uma grande e bela aventura, vivida com a paixão que sustenta e é o motivador de toda ilusão verdadeiramente autêntica.   

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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