Sim, senhor Cônego, auguro-lhe uma feliz quaresma, da mesma maneira que o senhor a deseja a mim. Existe tanta coisa a expiar, há tantas coisas a pedir. E creio que, para atender a todas essas necessidades, precisamos transformar-nos numa oração contínua e amar intensamente.

Elisabete da Trindade

[Trindade, Elisabete da, Irmã, Carmelita Descalça. Obras completas. Tradução autêntica dos originais por Attilio Cancian. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, Carta ao Sr. Cônego Angles, p. 203.]

Escolhi para este carnaval uma companhia muito peculiar e surpreendente. Como fosse ficar em Fortaleza, resolvi que aproveitaria uma parte do tempo disponível para fazer um pequeno “retiro espiritual”. Ponho a expressão entre aspas porque o meu seria um retiro de natureza muito peculiar, a começar pelo fato de que nele teria lugar também para a folia à noite no aterrinho da Praia de Iracema (a propósito, o show da Teresa Cristina na terça-feira à noite foi dos grandes momentos do carnaval de Fortaleza).

Pois bem, mas o fato é este: decidi que faria também um miniretiro em preparação para a quaresma. Para tanto, escolhi uma mestra que me conduziria ao longo dos quatro dias de carnaval, começando no sábado e terminando na terça-feira. A escolha da orientadora recaiu sobre a freira carmelita Elisabete da Trindade. Há oito anos adquirira um exemplar de suas obras completas. Até este momento, porém, havia lido apenas trechos, nunca tendo me dedicado a um estudo aprofundado dos escritos da Carmelita Descalça.

Além de poesias, fragmentos de seu diário, orações, relatos de retiros e excursões, estão publicadas também em suas obras completas um total de 287 cartas. Assim, decidi que durante os quatro dias de carnaval me dedicaria exclusivamente à leitura das cartas escritas por Irmã Elisabete. Mas não seria uma leitura contínua de todas as cartas nem, muito menos, uma leitura aleatória. Fiz o seguinte: partindo do pressuposto de que estaria fazendo um retiro, e de que Irmã Elisabete seria a minha orientadora espiritual durante estes dias, abri um Diário e adotei este procedimento: depois de uma oração inicial e uma meditação, faria à Mestra uma indagação. A seguir, abriria aleatoriamente o livro na parte relativa às cartas. Aquela que estivesse na página aberta, seria a resposta, a qual eu anotaria, a seguir, no Diário.

A pergunta inicial, feita no sábado pela manhã, foi o detonador para todas as demais que se seguiram ao longo dos quatro dias seguintes, pois cada questão estava, de alguam forma, ligada à anterior. Ao iniciar o processo de perguntas e leitura das respostas, aquelas deixaram de ser cartas dirigidas a outros correspondestes da Mestra entre o final do século XIX e o início do século XX; elas eram, a partir daquele momento, palavras ditas pela Mestra especificamente para mim, Vasco.

Para concluir, anteontem pela manhã, depois de orar e meditar, pedi à Mestra uma carta que fosse a síntese de tudo o que eu vienciara ao longo daqueles quatro maravilhosos e indescritíveis dias. A resposta – oh! maravilha das maravilhas! -, eu não a poderia desejar melhor: abri o livro na página 203, onde se encontra a carta nº 161, endereçada ao Cônego Angles, cujo terceiro parágrafo começa com as seguintes palavras: Sim, Sr. Cônego, auguro-lhe uma feliz quaresma… Li a carta e tremi de emoção quando me dei conta de que o fazia numa manhã de quarta-feira de cinzas, início da quaresma. Ante fato tão maravilhoso, só me restou exclamar: Oh! Meu Deus!, como é que uma criatura tão miserável e de fé tão vacilante recebe algo tão grandioso!

Cito, a seguir, alguns trechos de uma das cartas que obtive como resposta a uma indagação, a carta nº 268, escrita em 1906 e endereçada à srta. Francisca de Sourbon, uma das missivas que mais apreciei:

Sim, filhinha da minha alma, caminhe em Jesus Cristo, pois você necessita dessa via ampla, porque você não foi feita para as pequenas trilhas desta terra. Enraíze-se nele e por isso arranque-se, com raízes e tudo, de si mesma, em tudo agindo como quem está pronto para renegar-se toda vez que se defronta consigo mesmo. Edifique-se sobre ele, bem acima de tudo o que é transitório. Elevada assim ao alto, tudo é puro, tudo é luminoso. Consolide-se na fé, isto é, somente agir sob a grande luz de Deus, jamais segundo as impressões ou a fantasia. Creia no amor dele, na vontade que ele tem de ajudá-la ele mesmo nas lutas que você deve sustentar, confiados no seu amor, naquele “excessivo” amor, como o chama São Paulo (cf. Ef 2,4) (p. 344).

Nutra a sua alma com os grandes pensamentos da fé que lhe revelam toda a sua riqueza e a finalidade para a qual Deus a criou. Se vive nestas coisas, a sua piedade não será uma exaltação neurótica, conforme você teme, mas verdadeira. A verdade é tão bela, essa verdade do amor! “Amou-me e imolou-se por mim”(Gl 2,20). Eis, minha filhinha, o que significa estar na verdade (p. 345).

E para concluir, um dos trechos da carta que mais me emocionou:

Creio, realmente, que Deus quer que a sua vida transcorra num ambiente em que se respira ar divino (p. 343).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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