Há muitos anos, não me recordo exatamente citado por quem, deparei-me com a seguinte frase grafada em latim: Homo sum: nihil humani a me alienum puto, seguida da tradução: Sou homem: nada do que é humano me é estranho. A frase é de autoria de Publio Terêncio Afro, dramaturgo e poeta romano, nascido entre 195-185 a.C. e falecido por volta de 159 a.C., que a escreveu na obra intitulada Heaautontimorumenos. Dentre os muitos escritores que ao longo dos séculos citaram a frase o autor do texto que eu li destacava Machado de Assis, que, segundo afirmou, tinha por ela uma predileção toda especial, fazendo uso dela mais de uma vez.

No caso do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, porém, ele tinha por hábito escrever a frase de forma incompleta, pois, por temor de que os leitores a interpretassem mal, quando a citava não escrevia o último vocábulo, puto, embora essa palavra não tenha qualquer relação com sua correspondente feminina na língua portuguesa.

Bem, o fato é que desde que descobri essa citação, não mais a esqueci. Essa é uma daquelas frases que, uma vez dela tendo tomado conhecimento, logo a transformamos em máxima de vida, nunca mais deixando de remorá-la em diversas ocasiões pela existência a fora.  Gosto dela por suas muitas implicações filosóficas, dentre as quais eu destacaria duas.

Uma  primeira perspectiva filosófica seria a seguinte:  enquanto humanos, somos todos muito semelhantes, o que leva a concluir que nada do que aconteça  a qualquer pessoa, por mais distante ou estranha a mim que ela seja, deve ser sentido como se a mim próprio acontecesse, pois estamos todos  irmanados pelo puro e simples fato de pertencermos à espécie humana. A consequência natural dessa conclusão é o despertar de uma compaixão natural por todas as pessoas.

A segunda perspectiva  me parece não menos interessante e merecedora de consideração. Trata-se da constatação de que, sendo humano, nada do que aconteça a qualquer ser humano deve me surpreender, pois o mesmo poderia perfeitamente suceder a mim próprio. Refiro-me a atos porventura cometidos. Quanto a isso, nunca poderemos ter certeza absoluta de que, dadas determinadas circunstâncias oportunas e necessárias, não fosse qualquer um de nós capaz de cometer atos desde os mais heroicos até os mais vis e deploráveis.

Em cada um de nós habita, simultaneamente, um herói e um vilão, ambos prontos para entrar em ação tão logo as circunstâncias o exijam. Ninguém se jacte de ter controle absoluto sobre si mesmo e seus atos. Com isso não estou querendo dizer que um certo autocontrole não seja não somente possível quanto necessário, do contrário não poderíamos viver em grupo. É a repressão e o controle de uma boa quantidade de impulsos nem sempre os mais elogiáveis que sustentam a possibilidade de vida em sociedade. Entretanto, nem por isso podemos esquecer que o vilão está sempre à espreita.

Por isso, em consonância com a sábia premissa terenciana, assumi como princípio não me deixar surpreender por ato algum emanado de qualquer ser humano, uma vez que eu próprio não posso me julgar absolutamente imune à possibilidade de proceder de maneira semelhante.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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