A vida individual, qualquer que seja o tipo de sociedade, consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a outra. Nos lugares em que as idades são separadas, e também as ocupações, esta passagem é acompanhada por atos especiais, que, por exemplo, constituem, para os nossos ofícios, a aprendizagem, e que entre os semicivilizados consistem em cerimônias, porque entre eles nenhum ato é absolutamente independente do sagrado. Toda alteração na situação de um indivíduo implica aí ações e reações entre o profano e o sagrado, ações e reações que devem ser regulamentadas e vigiadas, a fim de a sociedade geral não sofrer nenhum constrangimento ou dano.

Arnold Van Gennep

[Gennep, Arnol Van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc. 2ª. ed. Tradução de Mariano Ferreira, apresentação de Roberto DaMatta. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 24.]  

O ser humano é um animal essencialmente ritualista. Tudo na vida ele ritualiza. Na verdade, talvez se possa dizer que o cotidiano de todos nós é constituído por uma sequência mais ou menos rotineira de ritos. Em que pese esta constatação, existe uma categoria de ritos que tem um caráter especial pelo seguinte motivo: eles assinalam momentos muito importantes ao longo da vida. Tais ritos cumprem a função precípua de demarcar momentos de mudança.

Dentre os ritos que se enquadram nessa categoria, comuns às mais diversas culturas, podem ser citados os que estão associados à gravidez e ao parto; ao nascimento,  à infância e à puberdade; ao noivado e ao casamento; e à morte. Todos esses podem ser considerados de alguma forma rituais de iniciação. Em alguns casos, são ritos altamente elaborados e de grande sofisticação, sobressaindo, dentre estes, os rituais de iniciação aos grandes mistérios, quase sempre de cunho religioso ou mágico.

O folclorista e etnólogo germânico Charles-Arnold Kurr van Gennep foi um dos primeiros pesquisadores a se interessar pelo estudo sistemático dos ritos. Nascido em Ludwisburg, Württemberg, sudoeste da Alemanha, em 1873, era filho de um emigrante francês e tenente da corte e de mãe de origem holandesa. Após sua educação fundamental, estudou filosofia, matemática, e frequentou cursos de curta duração nas universidades de Neuchâtel, Cambridge e Oxford. Trabalhou para o governo francês em duas oportunidades, na Aliança Francesa (1903-1910) e no Congresso Internacional de Arte Popular (1919-1921). Falecido em 1957, em Bourg-la-Reine, na França.

Arnold van Gennep  tornou-se um respeitável pesquisador sobre folclore e dedicou-se desde cedo às pesquisas sobre os ritos, sendo o livro Os ritos de passagem sua obra mais conhecida. Este livro acaba de ser lançado em segunda edição pela Editora Vozes. Para quem quer se iniciar no estudo dos ritos, é um livro de leitura agradável, informativa e envolvente, além, do fato de ostentar a prerrogativa de ter sido uma das primeiras publicações a tratar de forma ampla e sistemática do tema.

Um dos aspectos salientados nas pesquisas desenvolvidas pelo autor é a importância que diversas civilizações dão ao rito como forma de sacralização dos atos cotidianos. Essa é uma dimensão da experiência que, com a modernidade, foi se perdendo nas sociedades contemporâneas. Afirma o autor: “À medida que descemos na série das civilizações, sendo esta palavra tomada no sentido mais amplo, constatamos a maior predominância do mundo sagrado sobre o mundo profano, o qual, nas sociedades menos evoluídas que conhecemos, engloba praticamente tudo” (p. 23).

O livro conta, ainda, com uma bela apresentação do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta. Para concluir, cito aqui um trecho da apresentação, na qual DaMatta chama a atenção para essa que é uma das prerrogativas dos ritos: conferir um certo caráter de sacralidade, de mistério, aos atos cotidianos:  

 “Hoje,  passados tantos anos de sua publicação, o livro de Van Gennep vem sendo largamente utilizado e estudado, seja como base bibliográfica para análise dos cerimoniais, seja como ponto de partida para uma reflexão sobre o universo das relações sociais formalizadas entre os homens, os grupos, os espaços e as posições sociais fixas, seja – ainda – como uma fonte de inspiração teórica para o problema básico da natureza sociológica dos ritos e atos teatrais, essas ações que tornam a rotina diária senão suportável ou justa, pelo menos revestem-na com um certo toque de mistério, dignidade e elegância” (p. 9).

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles